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DEMÉTRIO MAGNOLI
A abolição
da Abolição
Celebra-se a queda do Império
no 15 de Novembro, a data da
proclamação da República, em 1889.
Mas, de fato, o Império faleceu um
ano e meio antes, no 13 de Maio de
1888, e seu atestado de óbito foi a Lei
Áurea, assinada pela princesa Isabel.
O 13 de Maio deveria ser comemorado
nas ruas como uma festa popular em
homenagem aos personagens públicos e aos milhares de heróis anônimos
que conduziram a primeira grande luta social de âmbito nacional no Brasil e
derrotaram a dinastia e a elite escravista. É uma tragédia que essa data tenha sido praticamente enterrada sob a
narrativa revisionista fabricada na linha de montagem da "história dos
vencidos".
Celebrou-se em 1971, pela primeira
vez, o 20 de novembro, dia do assassinato de Zumbi dos Palmares, no longínquo 1695. Zumbi foi um Espártaco
da América portuguesa, e teria sido
uma boa idéia juntar o Dia da Consciência Negra ao 13 de Maio, numa
dupla celebração anual. Em vez disso,
procedeu-se à difamação da Abolição.
Os revisionistas escrevem, em síntese,
que a Lei Áurea foi a conclusão de um
programa das elites, pontuado pelas
leis do Ventre-Livre e dos Sexagenários, para a plena implantação do capitalismo no Brasil.
A interpretação combina, pateticamente, um vulgar determinismo econômico com a reativação da narrativa
imperial que atribuiu a Lei Áurea a um
impulso humanitário da princesa.
Mas a sua finalidade é apagar do registro histórico os artigos e discursos de
Joaquim Nabuco, de José do Patrocínio, de Antônio Bento, de Silva Jardim, do ex-escravo Luís Gama e de
tantos outros. É obliterar os nomes
das sociedades abolicionistas, com
seus jornais e heróicos estratagemas
que permitiram fugas de milhares de
escravos das fazendas.
Os revisionistas passam a borracha
na saudação de Raul Pompéia aos escravos rebelados: "A idéia de insurreição indica que a natureza humana vive. A maior tristeza dos abolicionistas
é que essas violências não sejam freqüentes e a conflagração não seja geral". Eles condenam ao limbo os jangadeiros cearenses que se recusaram a
transportar aos navios os escravos
vendidos para outras províncias, os tipógrafos que não imprimiram panfletos anti-abolicionistas, os ferroviários
que escondiam os negros fugidos em
vagões ou em estações de trem.
A Abolição foi uma luta popular
moderna, compartilhada por brasileiros de todos os tons de pele. A sua
simbologia incita à revolta contra as
humilhações impostas por traficantes
e policiais às comunidades das favelas
e inspira a exigência de que todos tenham direito a escolas e hospitais públicos de qualidade. Mas não sustenta
as políticas neo-racistas que pretendem classificar e separar as pessoas
pela cor da pele, dissolvendo no seu
ácido os conceitos de cidadania e direitos universais.
Zumbi não viveu no Brasil, mas na
formação social de um enclave colonial-mercantil português. Na luta gloriosa e desesperada que liderou, não
existia a alternativa de mudar o mundo, mas apenas a de segregar os seus
num outro mundo, que foi Palmares.
Os revisionistas que fingem celebrar a
memória de Zumbi praticam um seqüestro intelectual, despindo a narrativa de seu contexto histórico para fazer do quilombo uma metáfora do seu
programa atual de separação política e
jurídica das "raças". Esse é o motivo
pelo qual decidiram abolir a Abolição.
Demétrio Magnoli escreve às quintas-feiras
nesta coluna.
@ - magnoli@ajato.com.br
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