São Paulo, quinta-feira, 11 de maio de 2006

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DEMÉTRIO MAGNOLI

A abolição da Abolição

Celebra-se a queda do Império no 15 de Novembro, a data da proclamação da República, em 1889. Mas, de fato, o Império faleceu um ano e meio antes, no 13 de Maio de 1888, e seu atestado de óbito foi a Lei Áurea, assinada pela princesa Isabel. O 13 de Maio deveria ser comemorado nas ruas como uma festa popular em homenagem aos personagens públicos e aos milhares de heróis anônimos que conduziram a primeira grande luta social de âmbito nacional no Brasil e derrotaram a dinastia e a elite escravista. É uma tragédia que essa data tenha sido praticamente enterrada sob a narrativa revisionista fabricada na linha de montagem da "história dos vencidos".
Celebrou-se em 1971, pela primeira vez, o 20 de novembro, dia do assassinato de Zumbi dos Palmares, no longínquo 1695. Zumbi foi um Espártaco da América portuguesa, e teria sido uma boa idéia juntar o Dia da Consciência Negra ao 13 de Maio, numa dupla celebração anual. Em vez disso, procedeu-se à difamação da Abolição. Os revisionistas escrevem, em síntese, que a Lei Áurea foi a conclusão de um programa das elites, pontuado pelas leis do Ventre-Livre e dos Sexagenários, para a plena implantação do capitalismo no Brasil.
A interpretação combina, pateticamente, um vulgar determinismo econômico com a reativação da narrativa imperial que atribuiu a Lei Áurea a um impulso humanitário da princesa. Mas a sua finalidade é apagar do registro histórico os artigos e discursos de Joaquim Nabuco, de José do Patrocínio, de Antônio Bento, de Silva Jardim, do ex-escravo Luís Gama e de tantos outros. É obliterar os nomes das sociedades abolicionistas, com seus jornais e heróicos estratagemas que permitiram fugas de milhares de escravos das fazendas.
Os revisionistas passam a borracha na saudação de Raul Pompéia aos escravos rebelados: "A idéia de insurreição indica que a natureza humana vive. A maior tristeza dos abolicionistas é que essas violências não sejam freqüentes e a conflagração não seja geral". Eles condenam ao limbo os jangadeiros cearenses que se recusaram a transportar aos navios os escravos vendidos para outras províncias, os tipógrafos que não imprimiram panfletos anti-abolicionistas, os ferroviários que escondiam os negros fugidos em vagões ou em estações de trem.
A Abolição foi uma luta popular moderna, compartilhada por brasileiros de todos os tons de pele. A sua simbologia incita à revolta contra as humilhações impostas por traficantes e policiais às comunidades das favelas e inspira a exigência de que todos tenham direito a escolas e hospitais públicos de qualidade. Mas não sustenta as políticas neo-racistas que pretendem classificar e separar as pessoas pela cor da pele, dissolvendo no seu ácido os conceitos de cidadania e direitos universais.
Zumbi não viveu no Brasil, mas na formação social de um enclave colonial-mercantil português. Na luta gloriosa e desesperada que liderou, não existia a alternativa de mudar o mundo, mas apenas a de segregar os seus num outro mundo, que foi Palmares. Os revisionistas que fingem celebrar a memória de Zumbi praticam um seqüestro intelectual, despindo a narrativa de seu contexto histórico para fazer do quilombo uma metáfora do seu programa atual de separação política e jurídica das "raças". Esse é o motivo pelo qual decidiram abolir a Abolição.


Demétrio Magnoli escreve às quintas-feiras nesta coluna.
@ - magnoli@ajato.com.br


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