São Paulo, segunda-feira, 11 de julho de 2005

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

TENDÊNCIAS/DEBATES

Corrupção: um novo modelo

JORGE DA CUNHA LIMA


Confundir o Estado com um instrumento de um partido é instaurar a pior corrupção, que é a traição ao sistema democrático
Uma história da corrupção republicana brasileira, se escrita, haveria de nos surpreender com esse modelo instaurado sob o guarda-chuva do PT. É inédito e digno de ser avaliado.
Vejamos. Adhemar de Barros fazia da corrupção uma estética populista, tanto é que ele próprio estimulou a divulgação da máxima: rouba, mas faz. Pessoalmente não ligava para dinheiro -guardava um bom volume dele num cofre no apartamento da amante. Era um tempo romântico, no qual os militantes revolucionários roubaram o cofre para financiar a guerrilha.
Os militares, se roubaram muito, é difícil dizer. Sem uma imprensa livre, com o Parlamento calado e os títulos voando livres, ao portador, como pegar o ladrão? Mas, se é verdade o que Montoro repetia a toda hora, "o poder corrompe, mas o poder absoluto corrompe absolutamente", não foi um período de santidade moral. Não combateram a corrupção, não fizeram nenhuma reforma substancial dos Poderes.
Já Collor, o protótipo mais afoito da categoria corrupto, roubava para fortalecer uma oligarquia de poder regional, deslumbrada com o dinheiro em si mesmo. Amealhar recursos indevidos era uma finalidade. Conta a lenda que o primeiro bilhão foi comemorado com festas inesquecíveis. Gostavam do poder e do espetáculo do poder, e tinham a ingenuidade de não esconder a volúpia consumista, com relógios Brightling, cascatas domésticas, os abomináveis jet-skis, BMWs e roupas, que só bem mais tarde seriam expostas num incrível templo de consumo edificado na marginal do poluído rio Pinheiros.
Houve modelos que se sucederam, quase todos contemplando o enriquecimento pessoal, embora sempre com o pretexto das campanhas eleitorais. Recolher para campanhas tornou-se virtude do coletor bem relacionado e bem credenciado para as retribuições.
O que se está vendo hoje nos depoimentos espontâneos aos órgãos de imprensa, nos depoimentos compulsórios das comissões de inquérito e das CPIs, além das denúncias patrióticas ou vingativas, é o surgimento de um novo modelo de corrupção: uma corrupção estrutural que visa municiar um aparelho partidário para que atue com tranqüilidade no poder e permaneça nele indefinidamente. Enfim, um plano com autonomia de vôo ilimitada.
No que aparentam as primeiras revelações, a sociedade, por meio de contratos de prestação de serviços, principalmente de empresas estatais, estava pagando um novo dízimo ao partido do governo e aos partidos aliados para garantir, ad aeternum, a governabilidade. É claro que, no fim da linha, sempre sobraria algum para o consumo conspícuo, porque ninguém é de ferro, mas a base da coisa não era essa. Partidarizar absolutamente o poder requer meios. Isso leva a três tipos de corrupção:
Preencher todos os cargos do governo com funcionários despreparados, mas fiéis ao projeto de poder.
Amealhar recursos, lícitos ou ilícitos, na maior quantidade possível e no menor tempo possível, para garantir a continuidade do poder.
E, talvez a pior das corrupções, trair a promessa feita ao eleitorado de promover o desenvolvimento, a justiça social, o fim da fome, o acesso ao conhecimento, à saúde, à informação, enfim, todas as campanhas do PT, até a derradeira que o levou ao governo da nação.
O Estado é a representação política da sociedade. Assim, como dizia o velho Ataliba Nogueira, na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, não é um fim, é um meio. Não podemos, contudo, confundir meio com meios.
Para realizar suas finalidades, o Estado se compõe de Poderes -o Executivo, o Legislativo e o Judiciário, dos quais os dois primeiros são constituídos a partir de mandatos eleitorais concedidos pelo voto popular, no sistema democrático de eleições livres e gerais. Em alguns países democráticos até os juizes são eleitos.
A rotatividade do poder é condição básica da democracia, mas não pensavam assim Franco, da Espanha, Salazar, de Portugal, Mussolini, da Itália, Hitler, da Alemanha, e Stálin, da Rússia, entre outros menos notáveis.
Dessa forma, querer confundir um instrumento do Estado com um instrumento de um partido, eliminando as fronteiras éticas e políticas entre governo, governantes, funcionários, fornecedores, empreiteiros, contratantes, cargos etc., é instaurar o pior tipo de corrupção, que é a traição ao sistema democrático. Esse sistema foi reconquistado com o maior sacrifício, por nós, pela sociedade brasileira e até mesmo por cidadãos citados nas denúncias.
Há, portanto, um trágico equívoco nisso tudo, de comezinha compreensão: a chegada ao poder não nos isenta de todos aqueles compromissos que dão sentido ao mandato, o mais elementar dos quais é a conduta ética.
Jorge da Cunha Lima, 73, jornalista e escritor, é presidente do Conselho Curador da Fundação Padre Anchieta e da Abepec (Associação Brasileira das Emissoras Públicas Educativas e Culturais), e vice-presidente do Itaú Cultural.

Texto Anterior: TENDÊNCIAS/DEBATES
José Eduardo Cardozo: Oportunidade perdida

Próximo Texto: Painel do leitor
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.