São Paulo, quinta-feira, 11 de agosto de 2005

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DEMÉTRIO MAGNOLI

Uma nova bipolaridade?

O primeiro-ministro Manmohan Singh foi feliz em Washington, há duas semanas. Seu anfitrião, George Bush, recepcionou-o com um banquete na Casa Branca e o raro direito a um discurso no Capitólio. Mas, sobretudo, concedeu à Índia "os mesmos benefícios e vantagens" de que usufruem as outras potências nucleares "oficiais", comprometendo-se com uma "completa cooperação" no campo do uso civil da energia nuclear. As sanções impostas desde os testes indianos de 1998 foram levantadas e, para todos os efeitos práticos, o "clube nuclear" passou a ser integrado por seis potências.
O gesto de Bush não é uma surpresa, pois os formuladores de política externa americanos anunciavam que o "aprofundamento das relações com a Índia" figurava no topo das prioridades do segundo mandato do presidente. Mas ele representa uma reviravolta histórica, com repercussões regionais e globais. No radar americano, a Índia separa-se do Paquistão, que é um aliado indispensável na "guerra ao terror", porém continua ocupando o lugar incômodo de potência nuclear "clandestina" e segue sujeito ao regime de sanções no campo da tecnologia nuclear. Acima de tudo, a nova parceria estratégica indo-americana cimenta os alicerces de uma política asiática destinada a contrabalançar o poderio chinês.
A corrente dos neoconservadores americanos emergiu da obscuridade, há três décadas, criticando a aproximação sino-americana conduzida por Richard Nixon e Henry Kissinger. A antiga "obsessão chinesa" parece mais intensa do que nunca e desafia os argumentos realistas.
A China, em nome de seus próprios interesses estratégicos, ajuda a preservar a frágil estabilidade geopolítica da Ásia, contribuindo para a contenção multilateral da Coréia do Norte, e em nome de seu desenvolvimento econômico cumpre a função crucial de financiar o déficit dos EUA, usando suas vastas reservas para comprar títulos do Tesouro americano. Mas os "neocons" orientam-se por imperativos ideológicos e movem-se ao sabor das projeções abstratas sobre a evolução do poderio bruto da potência asiática. Nos seus cenários, a China está condenada a desempenhar um papel comparável ao da União Soviética durante a Guerra Fria. Essa, como tantas outras, é uma profecia auto-realizável.
A "obsessão chinesa" justifica a proposta americana de reforma do Conselho de Segurança da ONU, com a entrada de apenas dois novos membros permanentes: Japão e Índia. A China, contudo, não admite a candidatura japonesa, sob o pretexto de que Tóquio se recusa a reconhecer, ampla e completamente, seus crimes de guerra. Os EUA, por sua vez, não aceitam a proposta do G4, que altera em profundidade o balanço de forças no CS. A dupla rejeição propicia uma aliança ocasional: Washington e Pequim anunciaram que trabalharão juntos para congelar a reforma.
Raymond Aron caracterizou as superpotências da Guerra Fria como "irmãos-inimigos", rivais que compartilham o interesse na manutenção do status quo. Na busca fanática por uma cadeira no CS, o Itamaraty cortejou Pequim durante os últimos dois anos, até o ponto intolerável de elogiar o comportamento chinês no tema dos direitos humanos. Voluntarismo? Desorientação? Não sei.


Demétrio Magnoli escreve às quintas-feiras nesta coluna.
@ - magnoli@ajato.com.br


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