São Paulo, sexta-feira, 11 de agosto de 2006

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JOSÉ SARNEY

Sonetos e votos

UM DOS meus amores são os sonetos e as redondilhas de Camões. Transformou-se de encantamento em xodó e deste em hábito. De quando em vez ou de vez em vez, para acabar com as formas de cansaço de cair no sono, no Luís Vaz, o Tira-Trintas (apelido do poeta que, por causa desse colérico gênio, deve ter perdido um olho), recolho a calmaria necessária que a poesia pede ao seu leitor. Não quero dizer com isso que esqueci ou estou traindo o Vieira, nas madrugadas de insônia, lido ou escutado nos sermões gravados, como o Dos Peixes, na voz de Ary dos Santos. De ler e de livros têm sido minhas noites. Outro bom de soneto era o nosso William Shakespeare. Quando ressurge a discussão se ele existiu ou não e quem verdadeiramente era, eu provo. Era o autor dos sonetos shakespearianos, não o das célebres tragédias, comédias e dramas. Só um gênio singular poderia fazer tão grande obra poética. Certo dia, já esmaecido pelo tempo, lembro-me da ante-sala do Golbery, chefe da Casa Civil do Geisel. Ali estava, sentado, lendo uns papéis, um homem já de cabelos raros e grisalhos: era Nehemias Gueiros. Ele foi logo dizendo-me que estava preocupado com as conseqüências das ações populares, então em moda. Eu não estava preocupado com nada, nem no grande mestre do direito. Para mim era o prazer de ver o estudioso e erudito que fizera uma introdução admirável e jamais igualada -é mesmo expressão de propaganda- dos sonetos de Shakespeare. Foi ela, que enriquece a tradução de Ivo Barroso, que me fez considerar Nehemias um intelectual, um dos mestres da teoria da literatura disfarçado em jurisconsulto. Sou fanático admirador dos sonetos de Camões, mas digo encabulado que o inglês de Stratford-on-Avon com ele se iguala ou até em alguns o supera. O dramaturgo fez esquecer o poeta, como o épico dos "Lusíadas" deu sombra ao lírico. É assim, em meio da tempestade e do que é mais uma campanha política para quem já concorreu a dez eleições, que me refugio nesta sexta-feira na poesia e, exausto, entre eleitores e leitores, revelo os poderes curativos da poesia para todos os cansaços da alma e do corpo. Mas cuidado. Como me dizia -a mim e a Álvaro Pacheco- Rachel de Queiroz, de quem permanece uma saudade que não deixa de beliscar, cuidado com os poetas porque muitas vezes eles fazem a gente sentir o que eles não sentem. Têm o gosto de nos comover, de nos elevar além daquilo que somos, entregues ao mundo do sentimento da alma. Salvo-me com um poeta. É Camões, quando no soneto 86 afirma que "Louvado seja amor em meu tormento". Assim seja.

jose-sarney@uol.com.br


JOSÉ SARNEY escreve às sextas-feiras nesta coluna.


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