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Duas histórias representativas
YVONNE MAGGIE
Está em jogo particularizar, a partir do recorte de "raça", ou universalizar o acesso do cidadão aos serviços públicos de saúde e educação
UMA SOBRINHA da empregada
de um amigo meu recebeu o
seguinte diagnóstico: sofria de
anemia falciforme. Na mesma semana, a filha de outro conhecido meu recebeu o mesmo diagnóstico. A sobrinha da empregada tinha 20 anos e
morava na zona oeste do Rio de Janeiro. A filha do meu conhecido, também com 20 anos, morava em Botafogo, zona sul da cidade.
Por ocasião do diagnóstico, as duas
foram informadas sobre o que e como
comer e como tratar os sintomas da
doença. A sobrinha da empregada era
uma moça branca, tratava-se em um
hospital público e, em poucos anos,
faleceu. A filha de meu conhecido,
também branca, foi tratada em um
hospital particular e sobrevive até hoje com as dificuldades próprias de
quem tem uma enfermidade crônica.
Um aluno meu, um jovem de 30
anos, filho de uma empregada doméstica, teve o diagnóstico de Aids e passou a tratar-se no posto de saúde do
bairro onde mora, na Baixada Fluminense. Lá, recebe seus medicamentos
e as consultas necessárias.
O filho de um amigo meu, também
da mesma idade e na mesma ocasião,
teve o temido diagnóstico e se trata
em um posto de saúde da zona sul do
Rio de Janeiro. Os dois rapazes, um
mais escuro e outro mais claro, um
pobre e outro rico, tiveram o mesmíssimo tratamento e sobrevivem igualmente bem nesses últimos oito anos.
O que nos dizem essas histórias?
Falam de pessoas que sofrem de enfermidades crônicas e vivem no Brasil. No caso dos portadores do vírus
HIV, os rapazes estão sendo salvos
porque o país revolucionou a política
de enfrentamento da epidemia utilizando a estratégia mais universalista
possível. Tanto pobres quanto ricos,
tanto autoclassificados pretos quanto
pardos e brancos se beneficiam da política de tratamento da Aids.
No caso da anemia falciforme, o resultado foi o inverso. Infelizmente, o
destino das enfermas foi totalmente
selado por sua posição de classe.
As histórias descritas acima, particulares no que tange aos seus personagens e ao tema saúde, na verdade
são representativas de dinâmicas
bem mais abrangentes em curso na
sociedade brasileira. O que está em
jogo é particularizar (a partir do recorte de "raça") ou universalizar o
acesso dos cidadãos aos serviços públicos de saúde e educação.
Tendo como pano de fundo as discussões sobre políticas públicas com
base na "raça", li com enorme espanto
o artigo de Otávio Velho publicado
nesta Folha em 15/9. O que o emérito
antropólogo carioca, no afã de defender a política de cotas raciais, parece
sugerir é que, como a anemia falciforme tem maior prevalência em populações de origem africana, tal associação daria respaldo à noção de "raça".
Trata-se de um enorme e perigoso
equívoco, também presente no projeto de lei que tramita no Congresso, o
chamado Estatuto da Igualdade Racial. A mutação responsável pela anemia falciforme aumenta de freqüência como uma estratégia evolucionária para lidar com a malária. Assim, o
gene é comum na África, no Mediterrâneo, no Oriente Médio e na Índia -
anemia falciforme é uma doença geográfica, e não "racial".
Por causa da mistura gênica que caracteriza o povo brasileiro, a anemia
falciforme aqui não respeita a pigmentação da pele, podendo atingir a
todos, como inclusive mostram os
exemplos que abrem este texto.
O passo seguinte no argumento de
Velho é sugerir, de maneira vaga e
"sem dar nome aos bois", que há respaldo para a idéia de "raça" em outros
domínios da biologia contemporânea. Ironicamente, o que a antropologia e outras ciências demoraram décadas para reverter (desnaturalizar a
idéia de "raça", situando-a como uma
invenção sociocultural) é recolocado
como fato por Otávio Velho.
Os críticos da política de cotas raciais estão querendo alertar a sociedade brasileira de que se desenrola
uma operação política e ideológica
para transformar nossa sociedade em
uma sociedade dividida "legalmente"
em brancos e negros e afirmando ser
preciso dar às políticas públicas a natureza universalista que devem ter.
Só assim a menina com posses e sofrendo com a anemia falciforme e a
sobrinha da empregada que sofria
dessa doença poderão ter o mesmo
destino do aluno pobre e do rapaz rico que se tratam da contaminação pelo vírus HIV. Todos eles merecem
que a sociedade se mobilize para que
os serviços públicos atendam igualmente cada brasileiro, independentemente de cor, classe e religião. A luta
que foi feita para se obter a estratégia
de universalização do tratamento da
Aids no Brasil é um exemplo de que é
possível tratar de forma igual todos
os cidadãos.
YVONNE MAGGIE DE LEERS COSTA RIBEIRO, doutora
em antropologia social, é professora titular do Departamento de Antropologia Cultural do Instituto de Filosofia e
Ciências Sociais da UFRJ (Universidade Federal do Rio de
Janeiro).
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