São Paulo, quarta-feira, 11 de outubro de 2006

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Duas histórias representativas

YVONNE MAGGIE

Está em jogo particularizar, a partir do recorte de "raça", ou universalizar o acesso do cidadão aos serviços públicos de saúde e educação

UMA SOBRINHA da empregada de um amigo meu recebeu o seguinte diagnóstico: sofria de anemia falciforme. Na mesma semana, a filha de outro conhecido meu recebeu o mesmo diagnóstico. A sobrinha da empregada tinha 20 anos e morava na zona oeste do Rio de Janeiro. A filha do meu conhecido, também com 20 anos, morava em Botafogo, zona sul da cidade.
Por ocasião do diagnóstico, as duas foram informadas sobre o que e como comer e como tratar os sintomas da doença. A sobrinha da empregada era uma moça branca, tratava-se em um hospital público e, em poucos anos, faleceu. A filha de meu conhecido, também branca, foi tratada em um hospital particular e sobrevive até hoje com as dificuldades próprias de quem tem uma enfermidade crônica.
Um aluno meu, um jovem de 30 anos, filho de uma empregada doméstica, teve o diagnóstico de Aids e passou a tratar-se no posto de saúde do bairro onde mora, na Baixada Fluminense. Lá, recebe seus medicamentos e as consultas necessárias.
O filho de um amigo meu, também da mesma idade e na mesma ocasião, teve o temido diagnóstico e se trata em um posto de saúde da zona sul do Rio de Janeiro. Os dois rapazes, um mais escuro e outro mais claro, um pobre e outro rico, tiveram o mesmíssimo tratamento e sobrevivem igualmente bem nesses últimos oito anos. O que nos dizem essas histórias?
Falam de pessoas que sofrem de enfermidades crônicas e vivem no Brasil. No caso dos portadores do vírus HIV, os rapazes estão sendo salvos porque o país revolucionou a política de enfrentamento da epidemia utilizando a estratégia mais universalista possível. Tanto pobres quanto ricos, tanto autoclassificados pretos quanto pardos e brancos se beneficiam da política de tratamento da Aids. No caso da anemia falciforme, o resultado foi o inverso. Infelizmente, o destino das enfermas foi totalmente selado por sua posição de classe.
As histórias descritas acima, particulares no que tange aos seus personagens e ao tema saúde, na verdade são representativas de dinâmicas bem mais abrangentes em curso na sociedade brasileira. O que está em jogo é particularizar (a partir do recorte de "raça") ou universalizar o acesso dos cidadãos aos serviços públicos de saúde e educação. Tendo como pano de fundo as discussões sobre políticas públicas com base na "raça", li com enorme espanto o artigo de Otávio Velho publicado nesta Folha em 15/9. O que o emérito antropólogo carioca, no afã de defender a política de cotas raciais, parece sugerir é que, como a anemia falciforme tem maior prevalência em populações de origem africana, tal associação daria respaldo à noção de "raça".
Trata-se de um enorme e perigoso equívoco, também presente no projeto de lei que tramita no Congresso, o chamado Estatuto da Igualdade Racial. A mutação responsável pela anemia falciforme aumenta de freqüência como uma estratégia evolucionária para lidar com a malária. Assim, o gene é comum na África, no Mediterrâneo, no Oriente Médio e na Índia - anemia falciforme é uma doença geográfica, e não "racial".
Por causa da mistura gênica que caracteriza o povo brasileiro, a anemia falciforme aqui não respeita a pigmentação da pele, podendo atingir a todos, como inclusive mostram os exemplos que abrem este texto.
O passo seguinte no argumento de Velho é sugerir, de maneira vaga e "sem dar nome aos bois", que há respaldo para a idéia de "raça" em outros domínios da biologia contemporânea. Ironicamente, o que a antropologia e outras ciências demoraram décadas para reverter (desnaturalizar a idéia de "raça", situando-a como uma invenção sociocultural) é recolocado como fato por Otávio Velho.
Os críticos da política de cotas raciais estão querendo alertar a sociedade brasileira de que se desenrola uma operação política e ideológica para transformar nossa sociedade em uma sociedade dividida "legalmente" em brancos e negros e afirmando ser preciso dar às políticas públicas a natureza universalista que devem ter.
Só assim a menina com posses e sofrendo com a anemia falciforme e a sobrinha da empregada que sofria dessa doença poderão ter o mesmo destino do aluno pobre e do rapaz rico que se tratam da contaminação pelo vírus HIV. Todos eles merecem que a sociedade se mobilize para que os serviços públicos atendam igualmente cada brasileiro, independentemente de cor, classe e religião. A luta que foi feita para se obter a estratégia de universalização do tratamento da Aids no Brasil é um exemplo de que é possível tratar de forma igual todos os cidadãos.


YVONNE MAGGIE DE LEERS COSTA RIBEIRO, doutora em antropologia social, é professora titular do Departamento de Antropologia Cultural do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro).

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