São Paulo, sábado, 11 de novembro de 2000

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Aumentar as penas inibe a criminalidade?

NÃO
Dos delitos e das penas

CARLOS WEIS

Em 1764, quando Cesare Beccaria publicou a obra que dá título a este artigo, fundando o direito penal contemporâneo, na Lombardia era frequente o emprego da tortura, as prisões não passavam de calabouços e as normas penais eram aplicadas conforme a classe e o prestígio do réu e da vítima. Qualquer semelhança com o Brasil atual não é mera coincidência.
Embora nosso sistema penal não autorize a tortura -como faziam os que vigoravam à época do mestre italiano-, ninguém desconhece sua prática disseminada, já tantas vezes denunciada por entidades de defesa dos direitos humanos. Os cárceres superlotados -em que pessoas dormem amarradas às grades, sofrem de sarna, tuberculose e Aids- não são novidade para ninguém. E, diz o povo, rico não vai para a cadeia.
Apesar de tais condições, que deveriam assustar todos os que planejam se tornar foras-da-lei, a criminalidade só vem aumentando, causando medo e perplexidade na população.
Nesse contexto, vozes têm se levantado em favor do endurecimento das penas, da manutenção ou ampliação da Lei dos Crimes Hediondos, da defesa da sociedade contra o crime, enfim, do que se convencionou chamar de "doutrina da lei e da ordem", apostando em tais caminhos como forma de dissuadir novas práticas criminosas. Geralmente valem-se de argumentos retóricos e emotivos, raramente escorados em dados de realidade ou em estudos que apontem ser esse o melhor caminho a seguir.
Embora sedutora e aparentemente sintonizada com o sentimento geral de indignação, tal corrente aponta para o caminho errado, para o retorno ao direito penal vingativo e irracional, tão combatido pelo iluminismo jurídico.
E o coro aumenta exatamente no momento em que o governo acaba de encaminhar ao Congresso o anteprojeto de Código Penal, elaborado por renomados juristas, com participação da sociedade organizada, cujo objetivo é o de racionalizar as penas, reservando a privação da liberdade somente aos que cometeram crimes mais graves e, mesmo para esses, tendo sempre em vista mecanismos de (re)integração social. Destaca-se o emprego das penas alternativas (prestação de serviços à comunidade, compensação pelo dano causado, restrição de direitos, entre outras).
Contra a idéia de que o bandido é um facínora que optou por atacar a sociedade, prevalece a noção de que são as vergonhosas condições sociais e econômicas do Brasil que geram a criminalidade e que, enquanto essas não mudarem, não há mágica: os crimes vão continuar a se suceder, quer se aumentem as penas, quer se construam mais presídios.
Isso não quer dizer que a violação ao direito penal possa ficar impune, mas é certo que não se pode pretender que a severidade da legislação penal seja utilizada para corrigir a desigualdade social.
Para que serve a pena, então? A Convenção Americana de Direitos Humanos -ratificada pelo Brasil em 1992- prevê que "as penas privativas de liberdade devem ter por finalidade essencial a readaptação social dos condenados", o que destoa da proposta de emprego das penas como forma de vingança social ou mesmo para inibir novos crimes. A ONU, em sua Convenção contra a Tortura, diz que penas que não se destinem a ressocializar o condenado podem ser consideradas cruéis, desumanas e degradantes.
A pena de prisão deve ser reservada àquelas pessoas que efetivamente signifiquem uma ameaça à vida, à integridade física e psíquica e mesmo ao patrimônio dos demais, cuja aplicação deve ser pautada não pela usual arrogância, mas até por um pouco de vergonha pública, na certeza de que, se o crime ocorreu, boa parte da responsabilidade é do próprio Estado.
Mais importante do que uma política criminal voltada à construção de prisões, é fundamental criar um direito penal que aposte em penas alternativas capazes de liberar recursos para a construção de escolas, hospitais, casas, centros de cultura e lazer, tudo o que vai atuar na efetiva prevenção do crime.
Voltando ao direito penal, a proposta de endurecimento das leis incide em mais um equívoco, o de apostar que, quanto mais longas e severas as penas, mais intimidado ficará o potencial infrator. Tal idéia, na verdade, vem sendo desmentida na prática, pois mesmo após a edição da Lei dos Crimes Hediondos, os índices de criminalidade cresceram, com destaque para o tráfico de entorpecentes e o latrocínio.
É muito mais sensato imaginar que a inibição do crime se dá no instante em que o infrator tem certeza de que será punido. E aí, pouco importa se a pena é de cinco ou dez anos de prisão, pois mesmo um mês nos modelares estabelecimentos prisionais brasileiros já faria inveja a Dante e assustaria o Diabo.
Um levantamento do sociólogo Túlio Kahn, do Ilanud (Instituto Latino-Americano da ONU para a Prevenção do Delito e Tratamento do Delinquente), mostra que as chances de que alguém cometendo crime seja preso e condenado são próximas a 2%. Então o que realmente importa, e aí deveriam estar centrados os alvos do debate sobre a criminalidade no Brasil, é a eficiência da polícia, a presteza do julgamento justo e o aprimoramento do sistema de penas.
Com isso, e não com discursos que apostem no ódio social e na exclusão, é que alcançaremos a diminuição dos crimes e uma vida mais justa e segura.


Carlos Weis, 34, é procurador do Estado de São Paulo e coordena a assistência judiciária da Casa de Detenção de São Paulo.



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