|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
CARLOS HEITOR CONY
Goiabada
RIO DE JANEIRO - Goiabada tinha cara de goiabada mesmo. Fica
difícil explicar o que seja uma cara
de goiabada, mas qualquer pessoa
que se defrontava com ele, mesmo
que nada dissesse, constataria em
foro íntimo que Goiabada tinha cara de goiabada.
Eu o conheci há tempos, quando
jogava pelada nas ruas da ilha do
Governador. Ele se oferecia para a
escalação, mas quase sempre era
rejeitado. Ruim de bola, era bom de
gênio. Quando a bola caía nos quintais vizinhos, era dele a missão de
pular os muros, enfrentar os cachorros e ouvir os desaforos do dono da casa.
Só entrava em campo quando havia uma vaga entre os que se julgavam titulares. Escalavam Goiabada
para o gol, levava porradas homicidas. Com Goiabada no gol, podia-se
encher o pé, valia tudo.
Perdi-o de vista, o que foi recíproco. Outro dia, parei num posto para
abastecer o carro e um senhor idoso
me ofereceu umas flanelas, dessas
de limpar pára-brisa. Ia recusar,
mas alguma coisa me chamou a
atenção: dando o desconto do tempo, o cara tinha cara de goiabada.
Fiquei indeciso. Não podia perguntar se ele era o Goiabada, podia se
ofender, não havia motivo para tanta e tamanha intimidade.
Se era o mesmo das peladas, poderia me reconhecer e aí teríamos a
confraternização, um bom reencontro, saberia o que ele havia feito
ou deixado de fazer. Na dúvida, preferi não arriscar.
O tanque do carro já estava cheio,
e o novo Goiabada, desanimado de
me vender uma flanela, ia se retirando em busca de freguês mais necessitado. Perguntei quantas flanelas ele tinha. Não sabia, devia ter
umas 40, não vendera nenhuma naquele dia. Comprei-lhe todas, ele
fez um abatimento razoável. E ficou
de mãos vazias, olhando o estranho
que sumia com suas 40 flanelas e
nem fizera questão do troco.
Texto Anterior: Brasília - Eliane Cantanhêde: Quem não brinca em serviço Próximo Texto: Marcos Nobre: O cidadão e o magistrado Índice
|