São Paulo, terça-feira, 11 de novembro de 2008

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CARLOS HEITOR CONY

Goiabada

RIO DE JANEIRO - Goiabada tinha cara de goiabada mesmo. Fica difícil explicar o que seja uma cara de goiabada, mas qualquer pessoa que se defrontava com ele, mesmo que nada dissesse, constataria em foro íntimo que Goiabada tinha cara de goiabada.
Eu o conheci há tempos, quando jogava pelada nas ruas da ilha do Governador. Ele se oferecia para a escalação, mas quase sempre era rejeitado. Ruim de bola, era bom de gênio. Quando a bola caía nos quintais vizinhos, era dele a missão de pular os muros, enfrentar os cachorros e ouvir os desaforos do dono da casa.
Só entrava em campo quando havia uma vaga entre os que se julgavam titulares. Escalavam Goiabada para o gol, levava porradas homicidas. Com Goiabada no gol, podia-se encher o pé, valia tudo.
Perdi-o de vista, o que foi recíproco. Outro dia, parei num posto para abastecer o carro e um senhor idoso me ofereceu umas flanelas, dessas de limpar pára-brisa. Ia recusar, mas alguma coisa me chamou a atenção: dando o desconto do tempo, o cara tinha cara de goiabada. Fiquei indeciso. Não podia perguntar se ele era o Goiabada, podia se ofender, não havia motivo para tanta e tamanha intimidade.
Se era o mesmo das peladas, poderia me reconhecer e aí teríamos a confraternização, um bom reencontro, saberia o que ele havia feito ou deixado de fazer. Na dúvida, preferi não arriscar.
O tanque do carro já estava cheio, e o novo Goiabada, desanimado de me vender uma flanela, ia se retirando em busca de freguês mais necessitado. Perguntei quantas flanelas ele tinha. Não sabia, devia ter umas 40, não vendera nenhuma naquele dia. Comprei-lhe todas, ele fez um abatimento razoável. E ficou de mãos vazias, olhando o estranho que sumia com suas 40 flanelas e nem fizera questão do troco.


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