São Paulo, terça-feira, 11 de dezembro de 2007

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VINICIUS MOTA

Perto da Tróia sertaneja

SÃO PAULO - Alguns trechos de "Os Sertões" não podem ser republicados sem provocar incômodo. É o caso da seção que caracteriza Antônio Conselheiro como a síntese quase delirante do primitivismo de seu meio: "Todas as crenças ingênuas, do fetichismo bárbaro às aberrações católicas, todas as tendências impulsivas das raças inferiores, livremente exercitadas na indisciplina da vida sertaneja, se condensaram no seu misticismo feroz e extravagante."
Euclydes da Cunha se propôs a explicar, mais do que a narrar, o episódio de Canudos. Daí o recurso à parafernália cientificista de segunda mão que chegava ao Brasil. Da geologia à psicologia, da antropologia à moral, tudo se dispunha em camadas, estágios, à moda positivista. Na virada para o século 20, o debate sobre raças e sua hierarquia na civilização era lugar-comum.
Toda essa volta para chegar a dom Luiz Cappio, que mais de cem anos depois jejua perto das ruínas da "Tróia sertaneja", hoje submersas no açude de Cocorobó. A recusa de comida, a indisposição com o poder clerical, a afronta ao governo federal, a atração de peregrinos à busca de um santo vivo. Alguns traços evocam a velha história.
O espetáculo cujo epicentro é uma capela em Sobradinho, contudo, não se nutre só de "crenças ingênuas". Quem esteve com o franciscano na primeira greve, há dois anos, notou que o evento agora está mais organizado. Dois grandes galpões de lona foram montados para abrigar romeiros. O religioso tem à disposição uma assessoria atenta, que está sempre lhe passando celulares para conversas e entrevistas.
Cappio conseguiu unir num mesmo protesto figuras como o ex-governador João Alves, oligarca de Sergipe, e João Pedro Stedile, ideólogo do MST -além da atriz global Letícia Sabatella, claro. Se o Conselheiro tivesse um décimo dessa capacidade de arregimentação, seu arraial não teria sido trucidado.


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