São Paulo, sexta, 11 de dezembro de 1998

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A Renault, o Paraná e o Brasil



A fábrica da Renault no Paraná é um contraponto ao cenário de crise que domina o imaginário brasileiro


Não há desembolso, não há renúncia fiscal, não há nada desvantajoso para Paraná e demais Estados na negociação
JAIME LERNER

Inaugurada na sexta-feira passada, com a honrosa presença do presidente Fernando Henrique Cardoso, a fábrica da Renault é um contraponto ao cenário de crise que domina o imaginário brasileiro. Para o Paraná, trata-se de uma conquista emblemática, por romper um ciclo de dependência que sufocava o desenvolvimento do Estado. Há um Paraná antes da Renault; desenha-se outro depois dela.
A exemplo dos mineiros, que há 20 anos apostaram na Fiat como ponto de partida para mudar sua economia, o Paraná, há três anos, fez da Renault uma alavanca decisiva. Antes mesmo de iniciada a construção de sua fábrica, na região metropolitana de Curitiba, o simples anúncio da vinda da empresa francesa desencadeou um notável ciclo virtuoso na vida do Estado, que já contabilizou US$ 15 bilhões em investimentos industriais nesse período.
Com a decisão da Renault, rapidamente outras seguiram seu caminho, como a Chrysler, que opera desde maio último e está ampliando sua planta com uma fábrica de motores, em associação com a BMW; a Audi/Volkswagen, que irá inaugurar sua fábrica em janeiro próximo, no município de Campo Largo; a Detroit Diesel; e a indústria de autopeças. Todas, com a Volvo, há 20 anos no Estado, fazem do Paraná um pólo automotivo de peso.
O que um Estado de predominância agrícola como o nosso quer com a indústria automobilística transcende em muito as colocações dos que pretendem reduzir a estratégia paranaense à chamada guerra fiscal.
Primeiro, diga-se que o presidente Fernando Henrique, ao instituir o regime automotivo brasileiro, assegurou ao país boa parte dos investimentos do setor, que antes tinha como endereço certo outros países do Mercosul.
O Paraná, como outros Estados, valeu-se dessa preciosa oportunidade. E o fez pensando no salto tecnológico representado pela indústria automobilística, nos milhares de empregos diretos e indiretos por ela gerados e -o que é fundamental- para inverter uma grave e inaceitável injustiça, criada a partir de sua condição de maior produtor brasileiro de energia elétrica.
A questão da energia é cruel. Por décadas, o Paraná alagou terras produtivas e investiu pesadamente na geração de energia elétrica, que hoje alimenta, em grande parte, o desenvolvimento de outros Estados, principalmente São Paulo. Agora mesmo, o Paraná está colocando em operação a usina de Caxias, no rio Iguaçu, a mais moderna do país, construída no prazo recorde de quatro anos. Com seus 1.240 megawatts, ela afastará a iminência de blecaute na região Sudeste.
E o que ganhamos com isso? Nada. Ao contrário, perdemos.
É que a Constituição de 88 puniu duplamente os Estados produtores de superávit de energia. De um lado, obrigou-os a vender o excedente gerado por um preço abaixo do custo de produção (proporcionando gordo lucro aos Estados que revendem essa energia no seu território por preços de mercado). De outro, transferiu a incidência de ICMS para a ponta do consumo.
A tributação sobre o consumo é princípio de justiça fiscal; mas ocorre que a mesma Carta de 88 usou dois pesos e duas medidas ao manter na origem -ou seja, nos Estados produtores- a incidência da maior parte da tributação sobre produtos industrializados.
Com isso, os Estados mais fortes, que mantêm folgados superávits nas relações de troca com as demais unidades da Federação, ganham de todos os lados; assim, vão prolongando a sua hegemonia. Isso, sim, é guerra fiscal.
Antes que se questionem com tanta acidez os incentivos dados pelos diversos Estados na disputa por investimentos industriais, é necessário que se reveja essa terrível injustiça dos mais fortes contra os mais fracos que vem grafada na Constituição. Aí está a origem de boa parte da questão.
Mas não é só isso. Especialmente no caso da indústria automobilística, é necessário lembrar que, quando ela chegou ao país, no final dos anos 50 e início dos 60 -por empenho estratégico e virtuoso do presidente Juscelino Kubitschek-, houve favores excepcionais, sabidamente rateados por toda a nação, enquanto os benefícios daí decorrentes ficaram quase integralmente com São Paulo, que monopolizou sua instalação e, com isso, disparou de vez no ranking econômico brasileiro.
Ao atrair a Renault, convicto dos benefícios que ela gera, o Paraná viu plenamente compensado seu esforço, pois não podia permanecer indefinidamente na condição de exportador de produtos agrícolas primários (especialmente considerando o alto grau de dificuldades do setor) e de energia barata. Isso equivale a exportar também empregos e tributos, atrofiando seu desenvolvimento.
Como ocorreu há 20 anos com a Fiat em Minas, o Paraná viu-se sob fogo cruzado ao oferecer incentivos à Renault. Esses incentivos foram formalizados num protocolo assinado em março de 1996 e mantido em sigilo por bom tempo, por razões obviamente estratégicas, sendo a principal delas a intensa negociação com inúmeras outras empresas que vieram depois.
É compreensível a especulação sobre os termos do protocolo até o momento em que ele permaneceu guardado a sete chaves. No entanto, passados meses da sua integral revelação, persistem maldosas distorções sobre as intenções e obrigações contidas nesse volumoso documento, cuidadosamente recheado de salvaguardas para as duas partes.
Até esta Folha -com o prestígio e a responsabilidade que tem-, na edição de 6/12, afirma, no editorial "Mão visível na indústria" (Opinião, pág. 1-2), que o Paraná fez com a Renault mera operação de franchising, "praticamente uma doação". Ora, não é nada disso que está escrito no protocolo.
Não há desembolso, não há renúncia fiscal, não há nada desvantajoso para os brasileiros do Paraná e dos demais Estados na negociação da Renault.
Em essência, a fórmula é complementar ao regime automotivo brasileiro. O governo do Estado participa do projeto com 40% das ações da empresa, até o limite de US$ 300 milhões, dinheiro "carimbado", oriundo do FDE (Fundo de Desenvolvimento Econômico) -instrumento existente há mais de 30 anos para fomentar a industrialização do Estado. Após sete anos, o governo poderá vender suas ações, com isso auferindo lucros e fazendo o dinheiro retornar ao FDE. A integralização da participação do governo é gradativa, à medida que avançam os investimentos.
Os famigerados incentivos, todos rigorosamente dentro da lei, dizem respeito essencialmente à dilação do prazo de recolhimento do ICMS por quatro anos, com a devida correção monetária. Assim, o ICMS relativo ao primeiro mês de operação será recolhido no 49º mês, com o imposto devido naquele mês; e assim sucessivamente, até sua total quitação. É desse ICMS novo que se poderá destinar uma parte -e só uma parte- para financiar a ampliação futura da fábrica, até o limite de US$ 1,5 bilhão, não significando nenhuma obrigação de chegar a esse montante e ressalvando sempre o mesmo mecanismo de retorno do dinheiro. Trata-se de instrumento semelhante aos existentes na maioria dos Estados.
Estudo recente da Coopers & Lybrand aponta para o acerto da negociação com a Renault: a empresa terá forte impacto no PIB paranaense e poderá gerar até 90 mil empregos indiretos, dependendo da conjuntura, com isso multiplicando desenvolvimento e gerando, em consequência, tributos para financiar o bem-estar social. O caso da Fiat em Minas pode avalizar perfeitamente o estudo da Coopers.
Não existisse nenhuma dessas razões (ou fossem elas menos importantes), só a questão da energia já valeria a luta do Paraná pela industrialização.
Longe de má vontade ou ressentimento em relação a São Paulo e outros Estados, essas ponderações são fundamentais para restabelecer a verdade e recolocar a discussão sobre a velha questão dos desequilíbrios regionais, que há tanto o país entendeu como indesejáveis. Do contrário, estaremos desperdiçando histórica oportunidade de desenhar um desenvolvimento mais harmônico no território brasileiro e transformando em tema passional o que é uma possibilidade racional (e uma necessidade) de criar mecanismos de salvaguarda dos interesses regionais.
Importante para o Brasil, fundamental para o Paraná, a Renault pode ser um bom parâmetro para esse entendimento. Mas é necessário que os termos formais contidos na negociação e o contexto da sua vinda falem mais alto do que especulação e ressentimento.



Jaime Lerner, 60, arquiteto e planejador urbano, é governador do Paraná, reeleito neste ano pelo PFL. Foi prefeito de Curitiba (PR) por três gestões (1971 a 75, 1979 a 83, 1989 a 92).





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