São Paulo, segunda-feira, 12 de janeiro de 2004

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TENDÊNCIAS / DEBATES

Triste Roraima

PAULO SANTILLI e NÁDIA FARAGE


O governo estadual tomou oportunamente a situação, de modo a criar seu Dezoito Brumário paroquial

A terra indígena Raposa/Serra do Sol, demarcada com área de 1.678.800 hectares, constitui, conforme reza a Constituição, o reconhecimento do Estado brasileiro aos direitos territoriais históricos dos povos indígenas que ali habitam, bem como seu direito ao futuro, visto serem as terras necessárias à sua reprodução física e social. Longe de um recorte arbitrário, os procedimentos oficiais para a definição do território indígena levam em conta, precisamente, os dois aspectos acima mencionados.
De um lado, a presença histórica dos macuxi, ingarikó, patamona, taurepáng, wapishana nos campos e serras de Roraima é amplamente atestada pela documentação colonial, desde as primeiras incursões portuguesas no início do século 18. Mais do que isso, o exame das fontes históricas demonstra fortemente que a terra indígena Raposa/Serra do Sol, em sua extensão territorial e composição étnica, é apenas uma fração de territórios e povos indígenas assolados por processos de escravização, de trabalho servil e de espoliação de terras ocorridos ao longo da colonização da região.
De outro, a garantia de reprodução física e social repousa basicamente na garantia de um território, que, no caso de povos indígenas, como se sabe, é mais do que uma simples relação entre extensão de terras e densidade populacional, constituindo, antes, espaço de investimento simbólico, instituinte de identidade e experiência coletivas. Por esse motivo, a legislação, sabiamente, ao definir território indígena, contempla processos sociais específicos. No caso dos povos habitantes da Raposa/Serra do Sol, há que ressaltar o seu padrão aldeão, pelo qual as aldeias se movimentam, não só devido a fatores econômicos e/ou ecológicos -como a necessidade de alternância das terras cultiváveis nas ilhas de mata ciliar existentes em uma paisagem predominantemente de campos e montanhas- mas também em razão de uma política que, baseada no parentesco, leva à fissão e à multiplicação de grupos locais. A demarcação em ilha, já tragicamente experimentada pelos wapishana ao sul da Raposa/Serra do Sol, ao confinar aldeias entre fazendas e outras formas de ocupação e, portanto, paralisar seu movimento espaço-temporal, não garante, por isso mesmo, a reprodução física e social desses povos.
Excetuando-se a tentativa de demarcação da área, feita pelo Serviço de Proteção aos Índios em 1917 -abortada, aquela também, pelos interesses da pecuária recém-instalada no que eram, até então, terras públicas-, a definição atual da Raposa/Serra do Sol é resultado de sucessivos grupos de trabalho criados pela Funai a partir de meados dos anos 70, mais precisamente em 1977, 1979, 1984 e 1988. Todos eles permaneceram inconclusos, ou seja, não geraram a providência administrativa da demarcação devido às pressões políticas de posseiros.
Só mais recentemente, em 1992, outros grupos de trabalho, dessa vez interministeriais, produziram estudo aprovado pela Comissão Especial de Análise da Funai no ano seguinte (parecer nš 036/DID/DAF, de 12 de abril de 1993, publicado no "Diário Oficial" de União em 21 de maio do mesmo ano).
Não obstante a sua aprovação na esfera técnico-administrativa, a regularização fundiária da terra indígena Raposa/ Serra do Sol foi adiada ainda pelos anos 90 afora. Em 1996, por força do controverso decreto 1775/96 -que regulamentou o direito ao contraditório por parte dos ocupantes de terras indígenas afetados por atos administrativos-, os ocupantes da Raposa/Serra do Sol fizeram, administrativamente, a defesa de seus interesses. Curiosamente, o maior número de contestações partiu não de ocupantes particulares, mas do próprio governo estadual e de prefeituras -contestações que, vale lembrar, foram todas refutadas com base em argumentos históricos, antropológicos e jurídicos. Ainda assim, a portaria da demarcação só veio a ser publicada dois anos depois, em 1998 (portaria nš 820, de 11 de dezembro de 1998).
A conjuntura criada pelo decreto 1775/96 é importante porque, finalmente, parecia que a situação política local adequar-se-ia à ordem legal: com efeito, segundo os dados do CIR/Funai, em 1999, havia 207 ocupantes rurais (i.e., fazendeiros) e, em 2003, apenas 67; 37 deles foram indenizados pela Funai, outros saíram após negociação direta com a associação indígena CIR (Conselho Indígena de Roraima). A homologação da terra indígena, ato conclusivo no processo de seu reconhecimento oficial, não veio, porém; enquanto tarda, a estratégia do governo estadual é a de produzir fatos consumados, como municípios, e incentivando atividades econômicas que, mal se iniciam, são apresentadas como panacéia, caso em que se enquadra a atual produção de arroz, instalada, note-se, após a demarcação, em 1998.
Os hiatos temporais -que se verificam entre todos os atos- que acima listamos, encontram sua inteligibilidade no cenário político mais amplo. Roraima, Estado recente e de baixa densidade demográfica, conta com uma bancada parlamentar numericamente expressiva, cujos votos o governo federal não tem dispensado em projetos controversos; desse modo, a demarcação da Raposa/ Serra do Sol tem figurado como objeto precioso de barganha entre as esferas federal e estadual nestas duas décadas de governo civil.
Obviamente, as oscilações do Estado só fizeram acirrar a violência interétnica na região no mesmo período. Seria, portanto, enganoso supor que as desordens a que hoje assistimos -tanto mais perplexos diante da leniência do governo e da mídia com relação a tais fatos, pois o leitor pode muito bem imaginar a reação a bloqueios e sequestros, fossem eles iniciativa de categorias sociais descapitalizadas- diferem, por natureza, de outros surtos havidos, como em 2000, quando missionários e agentes governamentais foram atacados e outdoors foram espalhados por Boa Vista e Brasília, exortando a violência contra órgãos do Estado. Lá, como agora, o governo estadual toma, oportunamente, a situação, de modo a criar seu Dezoito Brumário paroquial, apresentando distúrbios praticados por um pequeno grupo de arrozeiros e algumas facções indígenas como razão suficiente para que o governo federal não cumpra seu dever constitucional de homologar a terra indígena Raposa/Serra do Sol. Em 2000, tal estratégia de pressão funcionou, fazendo com que o governo FHC atirasse a homologação às calendas gregas. Para o presente, há que parafrasear Gregório de Matos, porque a triste Roraima também está, sem dúvida, em seu antigo estado. Pudera, é tanto negócio, tanto negociante...

Paulo Santilli, antropólogo, é professor do Departamento de Antropologia, Política e Filosofia da Faculdade de Ciências e Letras da Unesp. É autor de, entre outros livros, "Pemongon Patá: Território Macuxi, rota de conflito" (Edunesp, 2001). Nádia Farage, antropóloga, é professora do Departamento de Antropologia do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp.


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