São Paulo, segunda-feira, 12 de janeiro de 2004

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A contenção é de ouro

BETTY MILAN


Se a pessoa pública não ensina o uso comedido das palavras, pode-se exigir do delinquente o controle dos seus impulsos?

"Nem tudo se pode", como me disse Denise Milan. Sobretudo nesses tempos macabros. De supliciadores e balas perdidas. E o que menos se pode é dizer o que passa pela cabeça. Mas não há consciência disso. A prova é a palavra perdida (como bala) de três pessoas públicas pertencentes a três partidos políticos diferentes.
Assim, a de Antonio Carlos Magalhães em discussão no plenário: ACM acusa Bornhausen, presidente do PFL, de "roubar o partido". Bornhausen obriga ACM a se retratar para não ser expulso. O senador então declara que as expressões por ele empregadas não representam o seu pensamento. Desculpa-se, alegando inconsciência.
A descoberta do inconsciente, já datada de um século, explica que alguém possa dizer o que não pensa. Mas o que se espera do homem público é que ele diga o que pensa e se exercite nisso continuamente. Ou seja, que ele se dê conta do peso das suas palavras e não alegue o calor da hora para se justificar, esteja o menos possível sujeito ao próprio inconsciente.
A segunda palavra perdida -essa de dar medo- é a de Hebe Camargo, sobre o assassino de Liana Friedenbach, cuja morte, graças à tenacidade do seu pai, obriga a considerar que a questão do crime é de todos nós. Apontando o dedo para a câmera, a apresentadora diz: "Ai se eu pudesse fazer uma entrevista com o Xampinha. Ele ia virar linguiça. Viu, Xampinha? Vou fazer uma entrevista com você. Vou mesmo. Se me deixarem, eu vou armada. Saio de lá para a cadeia. Mas ele não fica vivo".
Por mais afetada que Hebe Camargo estivesse, ela só fez isso por agir numa sociedade que autoriza a falar impunemente o que vem à cabeça. Ou seja, a se valer do poder da palavra para incitar ao crime. O apresentador de um programa tem o direito de usar o poder que a televisão confere -de abusar dele, não.
A terceira palavra perdida (como bala) é a do sociólogo fundador do PT, Francisco de Oliveira. Diz, num seminário na Universidade Federal do Rio de Janeiro: "A política não se resume a rapapés, salamaleques e golpes de espertalhões que pensam estar inventando a roda, como esse ministro José Dirceu, que se parece com qualquer político safado do Brasil". Como Jorge Bornhausen, José Dirceu contratou um advogado para interpelar o seu acusador. Os dois agiram prontamente contra a difamação, e o procedimento tem uma função exemplar.
Se a pessoa pública não ensina o uso comedido das palavras, pode-se exigir do delinquente o controle dos seus impulsos? Como escreveu o incansável Frei Betto, "a vida social exige controle de nossos instintos, seleção de valores e opções que sempre implicam renúncias" ("Gosto de Uva", Garamond, 2003). Noutras palavras, ela exige a contenção.
A contenção é hoje -mais do que nunca, talvez- a condição "sine qua non" da vida e, por isso, é preciso que nós todos sejamos educadores, tenhamos como referência positiva o político que não diz o que quer e, sem ser oportunista, tem o senso da oportunidade. O jogador de futebol que só entra em cena quando a vitória do time requer. Ou o psicanalista que sempre se desqualifica e perde a possibilidade de agir se disser o que não pode ser escutado pelo analisando.
Os tempos são tão dramáticos que a responsabilidade verbal é um imperativo. Não se trata de silenciar, e sim de conter a palavra que violenta. Trata-se de uma causa sem nenhum custo material, mas cujo custo é o maior de todos. Implica a vigilância contínua.
Lula exercita-se nisso; ele hoje não perde a ocasião de ensinar a renúncia à satisfação imediata e é por isso que tanto o Ocidente quanto o Oriente brindam (celebram) a sua aparição no cenário mundial. A contenção é de ouro, poderia ele dizer, sugerindo que este novo ano será melhor se cada um de nós for mais capaz de se conter, se for de paz.
Ser de direita hoje é só se dispor a pagar com dinheiro. Imaginar que tudo passa pelo cifrão. Ser de esquerda é aceitar o desafio de pagar com a própria pessoa para sustentar valores.

Betty Milan, escritora e psicanalista, é autora de, entre outros livros, "A Paixão de Lia".


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