São Paulo, sexta-feira, 12 de janeiro de 2007

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Populismo e democracia

ALOIZIO MERCADANTE

Apesar da evolução política das democracias na América Latina, não se pode ocultar o fato de que elas ainda revelam fragilidades

NO DISCURSO de posse, o presidente Lula afirmou que seu governo não é populista. É popular. Com essa afirmação, o presidente delineou uma fronteira político-ideológica importante para as democracias da América Latina.
Essas democracias evoluíram muito, como demonstra o encontro, antes impossível de ser imaginado, entre a presidente do Chile, Michelle Bachelet, filha de um general assassinado pela ditadura Pinochet, e o presidente Lula, ex-líder sindical perseguido por outra ditadura.
Nos últimos tempos, houve eleições limpas em quase todos os países do continente e a imprensa funciona de maneira independente. Além disso, houve grandes avanços no fortalecimento dos direitos políticos e civis da população. Embora em graus variados, há liberdade de associação, de informação e de expressão. Pode-se, enfim, respirar livremente. O falecimento de Pinochet parece ter colocado um ponto final simbólico no ciclo das ditaduras latino-americanas.
Porém, essa evolução política não pode ocultar o fato de que as democracias latino-americanas ainda revelam fragilidades. O relatório do Pnud intitulado "A Democracia na América Latina", de 2004, advertia que o continente tem persistente crise social que afeta as suas democracias.
De fato, as desigualdades sociais persistem, os níveis de pobreza permanecem elevados, não há geração de emprego suficiente para reduzir a informalidade e o crescimento econômico tem sido baixo e irregular.
Esse quadro introduz limitações no processo democrático, pois as democracias sólidas têm de assegurar aos seus cidadãos não apenas direitos políticos e civis mas também direitos sociais e econômicos. Direitos políticos são os pilares fundadores das democracias, mas são os direitos sociais e econômicos que as consolidam .
Esse cenário assenta-se, em linhas gerais, nas políticas macroeconômicas ortodoxas, que, embora tenham tido sucesso na promoção da estabilidade monetária, se mostraram incapazes de promover crescimento econômico com distribuição de renda.
Porém, o efeito mais negativo dessas políticas foi gerar insatisfação no que tange ao desempenho das democracias. De acordo com o Latinobarômetro, mais de 50% dos cidadãos da América Latina responderam afirmativamente quando questionados se estariam dispostos a sacrificar um governo democrático em favor de progresso socioeconômico, o que mostra que a democracia ainda é pouco consolidada na região.
Essa insatisfação expressou-se, em período recente, no surgimento de regimes populistas em algumas nações. Tais regimes, apesar de legitimamente eleitos, têm introduzido elementos nocivos à normalidade democrática, como redução da independência entre os Poderes, restrições à liberdade de imprensa e formas de legitimação que prescindem dos mecanismos democráticos tradicionais.
Eles sinalizam que, na justificada luta pelos direitos sociais e econômicos da população excluída, certos direitos e liberdades civis podem ser sacrificados. Ademais, ao adotarem políticas econômicas que não têm sustentabilidade, esses regimes correm o risco de exacerbar a insatisfação que lhes deu origem.
Assim, as democracias latino-americanas vêm sendo fragilizadas, de um lado, por políticas demasiadamente ortodoxas que não resultaram na expansão dos direitos sociais e econômicos da população, e, de outro, por regimes populistas que, na tentativa de assegurar direitos sociais aos excluídos, solapam, com o sacrifício de princípios essenciais à cidadania e políticas sem sustentabilidade, os fundamentos da democracia.
O desafio das democracias latino-americanas é, pois, o de conciliar a consolidação dos direitos políticos e civis com a expansão dos direitos sociais e econômicos. Para tanto, é necessário, como afirmou o presidente Lula, um crescimento econômico sustentado com distribuição de renda e um Estado que seja capaz de prover serviços essenciais e investir nos setores estratégicos para o desenvolvimento, o que demanda política de controle do gasto público.
Octávio Mangabeira dizia que a democracia é uma plantinha que precisa de grandes cuidados. Para que essa planta cresça, teremos de enfrentar esse desafio. No primeiro governo Lula, demos um passo importante nesse sentido, ao distribuir renda sem o apelo populista à irresponsabilidade fiscal. Mas precisamos avançar mais neste segundo governo, inclusive com o imprescindível corte de gastos desnecessários. A democracia vale esse esforço.


ALOIZIO MERCADANTE, 52, economista e professor licenciado da PUC-SP e da Unicamp, é senador da República pelo PT-SP.

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