São Paulo, quinta-feira, 12 de fevereiro de 2009

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TENDÊNCIAS/DEBATES

A substituição dos desejos

JORGE DA CUNHA LIMA


Não é a economia que precisa mudar. O que precisa mudar é o comportamento da sociedade, dos políticos e da mídia

FELIZMENTE não sou economista, sou apenas poeta, jornalista, bacharel em direito com uma pós-graduação, ministrada na FGV há muitos anos por um administrador que lecionava em Israel.
Nessa condição posso afirmar, impunemente, que a economia de mercado foi tão malconduzida nos últimos 30 anos quanto a tentativa de salvá-la neste infeliz alvorecer de 2009. Responsáveis diretos por esta nação e só indiretamente pelo mundo, devemos avaliar e criar as saídas para a crise brasileira, ainda que no contexto do mundo. Para isso, temos que qualificar os dizeres da bandeira: civilização em vez de progresso, organização democrática em vez de ordem unida.
Os desejos induzidos pela economia de mercado depois da queda cruenta do nazismo tornaram-se avassaladores depois da queda fria do comunismo. Os ingênuos que desejavam um Mustang, nos anos 50, e as mulheres que pretendiam vestir-se como a Jacqueline Kennedy, nos 60, hoje, mesmo se simples pescadores das margens poluídas do São Francisco, se encantam com uma Ferrari, e as mulheres desejam o anel de R$ 30 mil que Patrícia Pillar usava na novela.
A economia capitalista tornou-se modelo único e indiscutível, exatamente porque o desejo de consumo, consumindo as mentes, aperfeiçoava e estimulava a oferta, até os esgares.
O segredo era simples: crédito farto a serviço do desejo. Desejo do supérfluo, que o pessoal do Iseb já chamava nos anos 60 de consumo conspícuo, definição difícil de entender.
Assim, a sociedade produtiva produzia o necessário e o supérfluo, enquanto o Estado, empobrecido, não produzia nem oferecia o essencial.
Como a gula fosse maior que a fatia, o crédito revestiu-se de artifícios embutidos e juros explícitos, quase imorais. Quando se começou a oferecer carros para pagamento em 90 meses, todos sabíamos que, na metade do prazo, o carro já não valeria nada, e o proprietário continuaria pagando (?) com o salário do emprego presumido. Nos Estados Unidos o mesmo empréstimo, sem muita garantia de ressarcimento, financiava casa, carro, barco e tudo o que o sonho desejasse.
Deu no que deu. Mas o mercado não é bom nem mau. É mercado.
A regulação do desejo é um problema da sociedade. E sociedade não é mercado. Sociedade é uma montagem política da cidadania. A sociedade deve definir e qualificar os desejos para que o mandato político dos legisladores, do presidente da República e do Banco Central não seja exercido em nome dos "fundamentals" da globalização, mas dos fundamentos da vida.
Assim, a superação da crise deve levar em conta os desejos fundamentais dos homens, e não a estrutura de um sistema que não deu certo, pois, se recuperado, irá produzir os mesmos efeitos destruidores.
Esses desejos são simples. Uma família precisa de casa para morar, comida no armário e na geladeira, saúde desde o recém-nascido até o vovô aposentado, matricular os filhos numa escola boa e ter dinheiro para pagar o material escolar; precisa um pouco de lazer, dentro e fora de casa, transporte que garanta a mobilidade, a possibilidade de vez ou outra ir à praia, tomar um banho de mar e, ainda, precisa muito da convivência humana no espaço privado e público, em segurança, A sociedade quer mais festa no espaço público. A estética do pobre está, sobretudo, na beleza das cidades. A satisfação econômica desses desejos produzirá os patamares desejados de desenvolvimento.
Não é a economia que precisa mudar, porque a economia é uma ciência, não é um dogma, nem é o mercado, esse animal com energia própria. O que precisa mudar é o comportamento da sociedade. O comportamento dos políticos e também da mídia, a propor novos desejos, compatíveis com a natureza humana, e não com os humores destrutivos da moda.
A exuberância do progresso moderno se baseou na proposição de desejos inatingíveis. Para saciar o desejo de um tênis Nike, o menor aponta um revólver para a cabeça de outro menor com tênis. Para comprar uma bolsa Vuitton, muitas belas jovens já se prostituíram. Para consumir crack, se mata, se rapta, se dança um tango argentino. Para comprar um carro, 90 meses de um salário suado são empenhados no colóquio sedutor de um gerente. Enfim, vende-se no varejo a alma ao diabo.
Mesmo sendo poeta, acho que sair da crise é promover uma organização racional dos desejos em busca da civilização. Não podemos nos contentar com desejos alucinatórios de um mercado robotizado. Essa cocaína financeira de Wall Street acabou, na prática e no modelo.


JORGE DA CUNHA LIMA , 77, jornalista e escritor, é presidente do Conselho Curador da Fundação Padre Anchieta e vice-presidente do Itaú Cultural.

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