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TRADIÇÃO DA CASA
Da figura do deputado Aldo
Rebelo, sempre tão melancólica e patibular, não se esperam tiradas
cintilantes de humorismo; mesmo
seus momentos de deboche, de escárnio e de disparate parecem vir cercados de um quê de involuntário e infeliz. Somente na categoria das piadas ditas a sério, com efeito, se pode
entender a declaração do presidente
da Câmara dos Deputados, segundo
a qual corresponderia a uma "tradição da Casa" a escandalosa absolvição dos deputados Roberto Brant
(PFL-MG) e Professor Luizinho (PT-SP), na quarta-feira passada.
Rebelo queria explicar que a Câmara não se caracteriza "por absolvições ou cassações em massa" e que
cada caso de envolvimento no "mensalão" será analisado individualmente. Digno de nota, entretanto, é o que
sua frase sem querer admite: que na
política brasileira a impunidade, a
desconsideração pela opinião pública e um senso mafioso do acobertamento mútuo prevalecem em qualquer circunstância, de modo que falar em "tradição da Casa", no atual
Legislativo, evoca menos algum respeitável ritual republicano do que a
linguagem promocional dos cardápios de pizzaria.
Mas o criador do Dia do Saci não
contribuiu sozinho para o festival de
frases folclóricas, entre cômicas e tenebrosas, que se fizeram ouvir durante a semana. O professor Luizinho tingiu de modéstia a própria vitória: "Não vou querer ficar fazendo
festa com algo que não se pode festejar. Seria uma falta de sensibilidade."
Seria, sim; e até falta de decoro, se o
termo pudesse ser pronunciado pelo
deputado. Pouco importa: a festa
que não se queria fazer acabou sendo
feita na mesma noite. Fechada à imprensa, a ela acorreram importantes
figuras do mensalismo nacional.
O outro absolvido, Roberto Brant,
feriu notas mais patéticas em seu discurso: "A amargura tocou minha alma com seus dedos frios, atravessou-a com pungência. E dentro de
mim nasceu um deserto, com o qual
eu vou viver para sempre". Viverá
com o deserto, mas não perde o
mandato. Viverá com o deserto, mas
um deserto que o "valerioduto" irrigou. Viverá com o deserto, mas sede
não passa: ei-lo, desde já, fotografado numa mesa de bar, brindando à
generosidade de seus pares.
Talvez tenha sido o excesso de escândalos, a complexidade e a demora nas apurações. Talvez tenha sido o
fato de que muitas organizações, outrora responsáveis pela cobrança de
ética na política, estejam hoje profundamente comprometidas com
um governo marcado pela mentira,
pelo fisiologismo e pelo escândalo.
O resultado é um quadro em que o
"silêncio das ruas" -na frase do
cientista político Luiz Werneck Vianna- termina contribuindo, tacitamente, para a realização de acordos
como o registrado na semana passada. Depende dos cidadãos -e um
sentimento de viva indignação decerto não lhes falta- mobilizar-se para
que a afronta não se repita.
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