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A esquerda e o país
RUY FAUSTO
Para além do petista e
do revolucionário, fica o projeto de reconstrução de um movimento socialista democrático
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Em um artigo anterior, "As perspectivas da esquerda", publicado nesta
Folha ("Tendências/Debates, 22/1), fiz
algumas considerações pessimistas sobre o destino do PT e sobre as perspectivas daqueles que, permanecendo no
partido, acreditam ainda na possibilidade de uma refundação. Mas ilusões existem também no bloco dos que saíram.
Entre esses últimos, não são poucos os
que, interpretando a crise como falência
do "caminho pacífico" para o Brasil, enveredam pela via do radicalismo revolucionário (no estilo de parte do PSOL, da
direção do MST etc.).
Que perspectivas poderiam ter hoje,
no Brasil, os projetos radicais revolucionários?
Claro que as previsões históricas são
difíceis, e a definição de objetivos vem
sempre afetada por um certo grau de incerteza. Mas, se julgarmos pelo que se
viu no século 20, colocar hoje suas fichas na revolução violenta é uma aposta
altamente arriscada. As três revoluções
"socialistas" mais importantes do século 20 -a russa, a chinesa e a cubana-
levaram aos piores resultados. Em primeiro lugar, elas custaram muito sangue e sofrimento.
Para a primeira: coletivização forçada
-mais ou menos 7 milhões de mortos-, terror e Goulag, mais uns 4 milhões ou 5 milhões, pelo menos etc.; para a segunda, além dos massacres dentro e fora do partido que começaram
muito antes da vitória final, houve o
chamado "grande salto para frente",
que custou de 20 milhões a 30 milhões
de mortos, a "revolução cultural", mais
ou menos 1 milhão etc.; para a terceira:
exílio de mais de 10% da população, repressão brutal de toda opinião dissidente, assassinatos políticos etc.
E tudo isso para desembocar em um
capitalismo selvagem (China) ou mafioso (Rússia) ou em uma situação de
miséria e colapso econômico (Cuba),
que prenuncia também, a médio prazo,
um retorno ao capitalismo. A acrescentar, nos três exemplos, a liquidação de
todo movimento socialista-democrático e a desmoralização da idéia geral de
"socialismo".
Porém os intelectuais que enveredam
por essa via não se dispõem a extrair lições dessas experiências. Sua fé no
"progresso social" é, à sua maneira, absoluta. Essa situação tem um contexto
mais amplo, embora seja difícil dizer se
se tratam de causas ou de efeitos.
A melhor e mais importante literatura
histórico-crítica sobre os "socialismos"
do século 20 nunca foi traduzida para o
português, e os originais, em francês, inglês ou espanhol, pouco são vistos -e,
menos ainda, lidos- no Brasil.
Só para dar alguns exemplos: por que
nenhum editor brasileiro se dispõe a
publicar (pelo menos o final) "Cuba:
The Pursuit of Freedom", de Hugh Thomas, o livro mais importante sobre a
história de Cuba do século 18 à atualidade? Por que não se traduz a extraordinária autobiografia de Huber Matos, o
quarto homem cubano da revolução,
que passou 20 anos nas prisões de Fidel?
Sobre a China, há 30 anos, sinólogos
franceses e anglo-americanos aliam
uma alta competência técnica a uma
formidável lucidez na leitura da história
chinesa do século 20. Por que nunca se
traduziu -que eu saiba- nenhum dos
seus livros (a começar, na ordem do
tempo, pelos textos de Simon Leys)?
Sobre a Rússia, traduziu-se mais. Penso, principalmente, no excelente "A
Tragédia de um Povo", de Orlando Figes. Porém, quantos leram esse livro? Os
leitores de Figes não são certamente tão
numerosos quanto os dos ícones do
pensamento terceiro-mundista, os da literatura gauchista -às vezes interessante, mas insuficiente- sobre o capitalismo ou os dos representantes nacionais do radicalismo revolucionário. O
resultado se vê.
A relativa consolidação de Chávez na
Venezuela (deixemos de lado, por ora, o
caso Morales) não é motivo para modificar o julgamento crítico sobre os populismos e os totalitarismos. Há novidade, mas ela está em que os fatos mostram o que não é de modo algum uma
boa notícia -que, na América Latina
(em termos de força, simplesmente), as
possibilidades do populismo não estão
esgotadas; e revelam também, o que, em
boa parte, é uma conseqüência, que o
poder totalitário em Cuba terá, provavelmente, uma sobrevida maior do que
se previa.
Convém lembrar que por trás da vitória dessas duas formas de autoritarismo
está quase sempre a desmoralização dos
poderes democráticos (democrático-capitalistas, embora) pela corrupção
desenfreada da chamada "classe" política. Nesse sentido, para o conjunto da
América Latina, incluindo o Brasil, as
perspectivas são, de algum modo, inquietantes. A menos que a vitória de Bachelet no Chile incline a balança da esquerda latino-americana para outra
direção.
Concluindo. Para além do modelo revolucionário e do modelo petista em
plena crise, fica o projeto de reconstrução de um movimento socialista democrático no Brasil, no contexto de uma
política de esquerda antitotalitária para
todo o continente. Apesar dos descaminhos de parte da social-democracia
-mas não se trata de uma simples retomada da política social-democrata,
mesmo nas suas melhores versões (sem
falar em uma certa legenda nacional,
que de social-democrata tem apenas o
nome)-, o projeto socialista democrático está mais vivo do que se supõe.
Ruy Fausto, filósofo, é professor emérito da USP. É autor, entre outras obras, de "Marx - Lógica e Política" (Editora 34).
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