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TENDÊNCIAS/DEBATES
Estratégia continental
BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS
A guerra global contra o terrorismo chega à América do Sul; as forças políticas progressistas ameaçam o domínio territorial dos EUA
SOBRE A INCURSÃO do Exército
colombiano em território do
Equador para eliminar um grupo de guerrilheiros das Farc parece
estar tudo dito, tanto mais que é um
caso encerrado -e bem encerrado.
Na verdade, assim não é. O que sobre
ela se revela é tão importante quanto
o que se oculta.
Primeira ocultação: os processos
políticos na América Latina estão
pondo em questão o controle territorial continental que os EUA precisam
para garantir o livre acesso aos recursos naturais do continente. Trata-se
de uma ameaça à segurança nacional
dos EUA que, perante o iminente fracasso das respostas "consensualizadas" (comércio livre e concessões de
bases militares), tem de ter uma resposta musculada e unilateral. Ou seja,
a guerra global contra o terrorismo
chega ao continente -chegou com o
Plano Colômbia, mas a "deriva" no
Oriente Médio provocou algum atraso- e assume aqui as mesmas características que tem assumido em outros continentes:
1) utilizar um aliado privilegiado
-seja Colômbia, seja Israel, seja Paquistão-, a quem ao longo dos anos
são fornecidas ajuda militar e informação de espionagem sofisticada que
o põem ao abrigo de represálias e lhe
permitem ações dramáticas de baixo
custo e êxito certo;
2) incitá-lo ao isolacionismo regional como preço a pagar pela aliança
hegemônica.
A guerra contra o terrorismo inclui
ações de grande visibilidade e ações
secretas. Entre estas estão os atos de
espionagem e de desestabilização de
que a Bolívia, a Venezuela e a tríplice
fronteira (Paraguai, Brasil e Argentina) são os alvos privilegiados. Na Bolívia, bolsistas norte-americanos da
Fundação Fulbright são chamados à
Embaixada dos EUA para dar informações sobre a presença de cubanos e
venezuelanos e movimentos suspeitos dos indígenas, enquanto os separatistas extremistas de Santa Cruz
são treinados na selva colombiana
por paramilitares. Fato novo: nas
ações de desestabilização, podem
participar empresas militares e de segurança privadas, contratadas pelos
EUA ao abrigo do Plano Colômbia,
dotadas de imunidade diplomática e,
portanto, impunidade perante a Justiça nacional.
Segunda ocultação: a verdadeira
ameaça não são as Farc. São as forças
progressistas e, em especial, os movimentos indígenas e camponeses. De
fato, a permanência das Farc é fundamental para manter a justificativa da
guerra contra o terrorismo e criar o
clima de medo e a lógica belicista que
bloqueiam a ascensão das forças progressistas, nomeadamente do Pólo
Democrático na Colômbia. Pela mesma razão, a intervenção humanitária
a favor dos reféns teve de ser dinamitada para que dela não tirasse dividendos políticos Hugo Chávez.
As forças políticas progressistas
ameaçam a dominação territorial dos
EUA com medidas que procuram fortalecer a soberania dos países sobre
os recursos naturais e alterar as regras de repartição dos benefícios da
sua exploração. Mas a maior ameaça
provém daqueles que invocam direitos ancestrais sobre os territórios onde estão esses recursos, ou seja, dos
povos indígenas. É eloquente a esse
respeito o relatório "Tendências Globais 2020", do Conselho Nacional de
Informação dos EUA, sobre os cenários de ameaça à segurança nacional
do país. Nele se afirma que as reivindicações territoriais dos movimentos
indígenas "representam um risco para a segurança regional" e são um dos
"fatores principais que determinarão
o futuro latino-americano".
"No início do século 21, há grupos
indígenas radicais na maioria dos países latino-americanos, que em 2020
poderão ter crescido exponencialmente e obtido a adesão da maioria
dos povos indígenas (...) Esses grupos
poderão estabelecer relações com
grupos terroristas internacionais e
grupos antiglobalização (...) que porão em causa as políticas econômicas
das lideranças latino-americanas de
origem européia."
À luz disso, não surpreende que o
presidente do Peru se pergunte "se
não haverá uma internacional terrorista na América Latina". Tão pouco
surpreende que já hoje centenas de líderes indígenas do Peru e do Chile estejam incriminados ao abrigo de leis
antiterroristas promulgadas nesses e
noutros países (por pressão dos EUA)
por defenderem os seus territórios.
A estratégia está, pois, delineada:
transformar os movimentos indígenas na próxima geração de terroristas
e, para os enfrentar, seguir as receitas
indicadas no relatório: tolerância zero; reforço das despesas militares; estreitamento das relações com os
EUA. A responsabilidade das forças
políticas progressistas é fazer com
que essa estratégia falhe.
BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS, 67, sociólogo português, é professor catedrático da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra (Portugal). É autor, entre outros livros, de "Para uma Revolução Democrática da Justiça" (Cortez, 2007).
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