São Paulo, sexta-feira, 12 de março de 2010

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Pioneiros no debate sobre drogas

LUIZ EDUARDO CERQUEIRA MAGALHÃES


Há 30 anos, a questão das drogas já incitava encontros e projetos, em SP, liderados por um padre canadense e um médico franco-alemão

AS RECENTES discussões sobre descriminalização da maconha, que incluem os importantes argumentos de defesa apresentados pelo presidente Fernando Henrique Cardoso, trazem à memória as primeiras reflexões no âmbito educacional sobre consumo de drogas. Há 30 anos, a questão incitou encontros e projetos, em São Paulo, liderados por um padre canadense e um médico franco-alemão.
No início de 1959, chegou a São Paulo, para lecionar filosofia no colégio Santa Cruz, um padre canadense que se tornaria figura de relevo para a sociedade brasileira. Trazia vasta bagagem cultural, obtida ao longo de sólida formação na Universidade de Montreal: bacharel em artes e humanidades, doutor em teologia e professor de filosofia.
Esse padre assimilou com rapidez a língua portuguesa, que passou a utilizar com grande fluência. Foi ídolo de uma geração de alunos com os quais era visto -de camisa vermelha, uma excentricidade na época- nas choperias em voga a discutir assuntos existenciais ou a literatura obrigatória em seu curso: Dostoiévski, Camus, Sartre, Kafka e Hermann Hesse, entre outros autores.
Publicou em vida cerca de 45 livros. Boa parte de sua obra foi dedicada à moral conjugal, introduzindo posições avançadas para a época, em textos que hoje podem soar anacrônicos. Publicou, também, uma enormidade de artigos para jornais e revistas, transformando-se em articulista assíduo desta Folha.
Em 1965, tornou-se vice-diretor-geral do colégio Santa Cruz. Homem vibrante, polêmico, exímio orador, foi logo descoberto pela mídia: dominava a linguagem do rádio e da TV e, por isso, era muito requisitado a participar de debates. Durante o regime militar, chegou a ter problemas com a censura pela participação em programas televisivos.
Leitor voraz, empilhava os livros ao lado da poltrona, ordenados por prioridade de interesse. Ao ler, arquivava seus grifos em fichas numeradas nas quais fazia transcrever as frases por assuntos. Marxismo, imperialismo, tempo, drogas, sexualidade, amor, angústia e assim por diante. Deixou mais de 70 mil dessas fichas, que estão em processo de digitalização para figurarem na biblioteca do colégio Santa Cruz.
Veio a falecer em setembro de 1987, após ter trabalhado na adaptação para a TV de suas últimas obras: "Adolescência e Sexualidade", "Aids: Prevenção/Escola"; "Drogas: Prevenção/Escola". No dia fatídico de seu acidente vascular cerebral, havíamos passado a tarde juntos, ele, José Bonifácio Coutinho Nogueira e eu, discutindo essa produção.
Terminada a reunião, ele se dirigiu à sua última conferência, durante a qual caiu sobre a mesa e não mais recobrou a consciência. Tratava-se do padre Paul-Eugène Charbonneau -padre Eugênio, para os amigos, Charbonneau, para o público.
Em 1983, eu era vice-diretor-geral do colégio Santa Cruz e com frequência me reunia com a professora Malu Montoro Jens para conversar sobre problemas da escola.
Às vezes, padre Charbonneau vinha participar desses diálogos. A fumaça e o odor de charuto precediam sua presença, anunciando que teríamos ótima companhia.
Numa dessas tardes, ponderávamos sobre o pouco conhecimento que tínhamos a respeito de drogas e a necessidade de nos prepararmos para enfrentar esse problema. Padre Charbonneau sugeriu que convidássemos psiquiatras ou psicanalistas de São Paulo que cuidavam de adolescentes para nos introduzir ao tema.
Depois do segundo encontro com esses especialistas, padre Charbonneau (quem o conheceu recordará o gesto) bateu firme na mesa e disse: "Meus filhos, aqui não aprenderemos nada. Precisamos encontrar quem nos ensine. Vou descobrir no mundo quem entende disso".
Um mês e meio depois, ele nos procurou: "Descobri o homem. Trata-se de um alemão naturalizado francês que criou, em Paris, o Instituto Marmottan, de recuperação de drogados, talvez o mais importante do mundo, e que é autor de vasta obra científica sobre o assunto. Consigo com o Rotary Club, por meio do diretor Gino Pereira dos Reis, verba para a sua vinda". Claude Olievenstein veio a São Paulo pela primeira vez em setembro de 1984 e, depois disso, algumas outras vezes até 1990.
Para a primeira visita de Olievenstein, criamos uma comissão formada por membros da Faculdade de Medicina da USP, da Faculdade Paulista de Medicina, de um grupo liderado pelo psiquiatra Richard Kanner -integrado por Maria de Lurdes Zemel e Francisco Algodoal, entre outros.
Olievenstein fez sua conferência inaugural para os pais de nossos alunos sobre o tema das drogas, numa época em que falar disso nas escolas era tabu. Suas ideias constituem a base de nosso projeto atual de prevenção do uso de drogas.
Em sua penúltima vinda a São Paulo, minha mulher perguntou-lhe: "Dr. Olievenstein, Sartre está morto, Simone de Beauvoir, morta. Expoentes do pensamento francês, muitos dos quais vieram ao Brasil na missão que fundou a USP, como Roger Bastide, Fernand Braudel e Pierre Mombeig, já se foram. Lévi-Strauss beira os 80 anos. Quem seria, hoje, o mais representativo intelectual francês?". E ele respondeu: "Madame, je crois que c'ést moi" (Senhora, creio que sou eu). Percebi então que aquele alemão era um francês de verdade.


LUIZ EDUARDO CERQUEIRA MAGALHÃES , 64, é diretor geral do Colégio Santa Cruz e membro do Conselho Estadual de Educação de São Paulo.

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