São Paulo, segunda-feira, 12 de abril de 2004

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JOSÉ SERRA

De barriga cheia

Os dirigentes do PT e do governo federal não gostaram do artigo que Fernando Henrique publicou em "O Estado de S. Paulo", com reparos à administração petista. Incomodados, desencavaram a crítica já gasta da "herança maldita" e acrescentaram a impropriedade de o ex-presidente intrometer-se na política cotidiana.
Evidentemente, a alegação de impropriedade é imprópria. Afinal, o principal sustentáculo político do governo Lula é um ex-presidente da República, o senador José Sarney. O ex-presidente Itamar Franco representa o Brasil na Itália. E Fernando Henrique, ao que consta, não sofreu nenhuma cassação de direitos políticos. Ex-presidente a favor pode imiscuir-se na política interna e externa, ex-presidente contra não pode? Trata-se de uma variante da ideologia do pensamento único -digo variante porque, no caso, não há o "pensamento" (programa de governo, visão do país), mas apenas o "único".
Quanto a heranças, cabe lembrar que a transição que o governo Fernando Henrique preparou para seu sucessor foi extraordinariamente benigna. Não me refiro apenas à escrupulosa abertura de informações e ao evidente cuidado para não usar a "máquina" para interferir no processo eleitoral, mas também às providências adotadas na área econômico-financeira.
Basta recordar, a respeito, cinco medidas. A primeira foi a magnitude do superávit primário em 2002, que ultrapassou em pelo menos R$ 3 bilhões a meta estabelecida com o Fundo Monetário Internacional. Ou seja, R$ 3 bilhões que poderiam ter sido gastos em bens e serviços durante o ano eleitoral foram poupados, deixando raio de manobra relevante para o governo que viria depois.
A segunda providência foi a diminuição relativa dos restos a pagar em 2003. "Restos a pagar" são despesas autorizadas ou "empenhadas", no jargão orçamentário, mas não pagas. Ao diminuir o percentual desses restos de 2002 para 2003, o governo Fernando Henrique privou-se de iniciar ou prosseguir várias obras e ações, facilitando a tarefa orçamentária do governo Lula. Restos a pagar provocam sempre uma grande dor de cabeça administrativa.
Terceiro: no final de 2002, o governo Fernando Henrique e a bancada do PSDB facilitaram a aprovação das medidas tributárias solicitadas pela futura administração petista, mesmo a contragosto, pois algumas delas elevariam a já alta carga tributária, como o aumento da Cide, o prolongamento das alíquotas maiores da Contribuição sobre os Lucros e os vetos a alívios tributários concedidos pelo Congresso.
Quarto: mesmo no fragor da disputa eleitoral, o governo Fernando Henrique, via Banco Central, não hesitou em empinar as taxas de juros, culminando com o aumento de três pontos percentuais entre o primeiro e o segundo turnos, a fim de aplacar o nervosismo do chamado mercado financeiro. Note-se, como lembrou Pérsio Arida, que o Federal Reserve -o banco central norte-americano-, há cerca de 60 anos, não mexe na taxa básica de juros nos seis meses anteriores a uma eleição presidencial.
Finalmente, o governo Fernando Henrique promoveu um reajuste dos preços da gasolina e do gás no penúltimo dia de mandato, tomando para si todo o ônus social da medida.
Não se tem notícia de maior altruísmo numa transição presidencial para a oposição. Os dirigentes do PT e do governo federal choram, portanto, de barriga cheia, esquecidos de que, pelo menos nesse caso, o Fome Zero parece que funcionou.


José Serra escreve às segundas-feiras nesta coluna.


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