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JOSÉ SERRA
De barriga cheia
Os dirigentes do PT e do governo federal não gostaram do artigo que Fernando Henrique publicou
em "O Estado de S. Paulo", com reparos à administração petista. Incomodados, desencavaram a crítica já gasta
da "herança maldita" e acrescentaram
a impropriedade de o ex-presidente
intrometer-se na política cotidiana.
Evidentemente, a alegação de impropriedade é imprópria. Afinal, o
principal sustentáculo político do governo Lula é um ex-presidente da República, o senador José Sarney. O ex-presidente Itamar Franco representa o
Brasil na Itália. E Fernando Henrique,
ao que consta, não sofreu nenhuma
cassação de direitos políticos. Ex-presidente a favor pode imiscuir-se na
política interna e externa, ex-presidente contra não pode? Trata-se de
uma variante da ideologia do pensamento único -digo variante porque,
no caso, não há o "pensamento" (programa de governo, visão do país), mas
apenas o "único".
Quanto a heranças, cabe lembrar
que a transição que o governo Fernando Henrique preparou para seu sucessor foi extraordinariamente benigna.
Não me refiro apenas à escrupulosa
abertura de informações e ao evidente
cuidado para não usar a "máquina"
para interferir no processo eleitoral,
mas também às providências adotadas na área econômico-financeira.
Basta recordar, a respeito, cinco medidas. A primeira foi a magnitude do
superávit primário em 2002, que ultrapassou em pelo menos R$ 3 bilhões
a meta estabelecida com o Fundo Monetário Internacional. Ou seja, R$ 3 bilhões que poderiam ter sido gastos em
bens e serviços durante o ano eleitoral
foram poupados, deixando raio de
manobra relevante para o governo
que viria depois.
A segunda providência foi a diminuição relativa dos restos a pagar em
2003. "Restos a pagar" são despesas
autorizadas ou "empenhadas", no jargão orçamentário, mas não pagas. Ao
diminuir o percentual desses restos de
2002 para 2003, o governo Fernando
Henrique privou-se de iniciar ou
prosseguir várias obras e ações, facilitando a tarefa orçamentária do governo Lula. Restos a pagar provocam
sempre uma grande dor de cabeça administrativa.
Terceiro: no final de 2002, o governo
Fernando Henrique e a bancada do
PSDB facilitaram a aprovação das medidas tributárias solicitadas pela futura administração petista, mesmo a
contragosto, pois algumas delas elevariam a já alta carga tributária, como o
aumento da Cide, o prolongamento
das alíquotas maiores da Contribuição sobre os Lucros e os vetos a alívios
tributários concedidos pelo Congresso.
Quarto: mesmo no fragor da disputa
eleitoral, o governo Fernando Henrique, via Banco Central, não hesitou
em empinar as taxas de juros, culminando com o aumento de três pontos
percentuais entre o primeiro e o segundo turnos, a fim de aplacar o nervosismo do chamado mercado financeiro. Note-se, como lembrou Pérsio
Arida, que o Federal Reserve -o banco central norte-americano-, há cerca de 60 anos, não mexe na taxa básica
de juros nos seis meses anteriores a
uma eleição presidencial.
Finalmente, o governo Fernando
Henrique promoveu um reajuste dos
preços da gasolina e do gás no penúltimo dia de mandato, tomando para si
todo o ônus social da medida.
Não se tem notícia de maior altruísmo numa transição presidencial para
a oposição. Os dirigentes do PT e do
governo federal choram, portanto, de
barriga cheia, esquecidos de que, pelo
menos nesse caso, o Fome Zero parece
que funcionou.
José Serra escreve às segundas-feiras nesta
coluna.
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