São Paulo, domingo, 12 de maio de 2002

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

TENDÊNCIAS/DEBATES

DIA DAS MÃES

Alegria de ser mãe

EUGÊNIA DE JESUS ZERBINI


A maternidade tem o condão de enfeixar os opostos. Talvez daí venha seu poder de transformação


Vivi minha gravidez como se ela fosse um mistério. Mistério no sentido dos antigos mistérios da Antiguidade clássica -os famosos mistérios de Eleusis, em que se celebravam a vida e, paradoxalmente, também a morte. Os participantes assumiam o compromisso de não revelar o conteúdo do processo a que haviam se submetido. De qualquer forma, a experiência era tão pessoal e marcante que tornava-se difícil reduzi-la a palavras.
Recebi minha filha como se fosse uma revelação. Meu sentimento era de que eu havia sido tocada pela asa de um anjo. É absurdo, mas às vezes sentia-me como se fosse a primeira mulher a engravidar no mundo. Era fascinante sentir meu corpo se transformar e o meu ventre crescer. Foram doces as dores na hora do parto. Após ter dado à luz, nos dias em que me sentia triste, procurava me lembrar daquele peso adorável da gestação em meu corpo e das contrações acre-doces da hora do nascimento.
Ter minha filha nos braços fez-me entender que eu era parte de uma longa cadeia, iniciada pelas mulheres que me precederam; vê-la diante de mim, entender que esse fluxo irá continuar. A grandeza das mães está na aceitação de sermos simples elos nessa corrente infinita. Ao ninar minha filha, estava aconchegando minhas avós -uma delas minha madrinha e a outra uma avó muito querida. E todas aquelas que vieram antes delas. Estou certa de que um dia serei aconchegada nos braços de uma neta. Ou então, minha lembrança o será.
Houve também rupturas. Entendi, às vezes com dor, que partes de mim e da minha vida precisavam ser transformadas para dar lugar a essa nova criança. Perdi minha autonomia total de antes, fiquei menos profissional -em alguns pontos menos segura- e perdi algumas fantasias. Porém passei a dar mais valor aos pequenos milagres do cotidiano e às vitórias do dia-a-dia. Sobretudo, passei a reconhecer a generosidade de Deus para comigo, que permitiu, por meios materiais e subjetivos, que eu tivesse minha filha e pudesse aconchegá-la, protegê-la e nutri-la de uma forma que grande parte das mulheres desse planeta, principalmente pela falta de condições básicas de vida, são impedidas de fazer.
Diariamente agradeço a Deus por ter aumentado minha fé e por renovar constantemente minha esperança no futuro, tornando possível que eu seja um bom exemplo para minha filha.
A realidade é violenta, a natureza está ameaçada e o mundo em que minha filha viverá será extremamente competitivo. Muitos antes dela, todavia, encararam e venceram enormes desafios. Minha avó paterna veio com o pai do Piemonte (Itália) para o Brasil, por volta de 1880. Ela era ainda pequena e órfã de mãe. Recordo-me dela contando como foi o dia em que soube, pelos jornais e em Guaratinguetá, que haviam declarado a Primeira Guerra Mundial. Era italiana de nascimento, mas naturalizou-se brasileira e nunca falou italiano com os filhos. Dizia adorar o Brasil e não quis voltar nem em visita para a Itália, onde havia nascido.
Minha outra avó, por parte de mãe, encheu minha infância de cores com seus relatos sobre o bombardeio de São Paulo, em 1924, e a destruição da Igreja do Cambuci, próxima de onde ela morava. Explicava-me como fazia pão de milho para os filhos, durante o racionamento no tempo da Segunda Guerra Mundial, e da sua agonia quando um de seus filhos foi convocado para lutar na Europa. Segundo ela, havia rezado tanto que, antes de ele partir, a guerra acabou.
As duas viveram revoluções, golpes de Estado, o "crack" de 1929; presenciaram mudanças de moedas, reformas ortográficas e passaram a ser eleitoras. As duas tiveram filhos engajados nas lutas internas da história brasileira; ambas tiveram filhos presos e perseguidos por motivos políticos. Como se não bastasse, as duas passaram pelo crivo da maior dor por que uma mãe pode passar: perderam filhos em vida. E as duas sobreviveram, transmitindo lições de vida para os que ficaram.
A maternidade é uma antinomia. É possível amar alguém mais do que a si próprio, mas, por segundos, desejar que esse alguém desapareça de sua frente, principalmente quando ele chora e você quer dormir. É possível querer um dia de sossego, longe desse alguém, mas queimar de saudades quando isso acontece. É sofrer internamente pela necessidade de estabelecer para si própria limites externos. É duvidar do que se supõe sabido na hora de ensinar. E quando os filhos crescem, amá-los por olhar para eles e reconhecer-se, como também amá-los por olhar para eles e não se reconhecer. A maternidade tem o condão de enfeixar os opostos. Talvez daí venha seu poder de transformação.
Neste dias das mães, meu desejo é que minha filha possa um dia sentir a mesma felicidade que a maternidade trouxe para a minha vida.


Eugênia de Jesus Zerbini, 48, é mestre em direito internacional pela Universidade de Dijon (França) e doutoranda em direito internacional pela USP.


Texto Anterior: Frases
Próximo Texto: Maria José O'Neill: Mater dolorosa
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.