São Paulo, quinta-feira, 12 de maio de 2005

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TENDÊNCIAS/DEBATES

A ditadura do relativismo

BORIS FAUSTO

Nos muitos textos e falas do cardeal Joseph Ratzinger encontra-se a defesa de uma fé adulta que resista às ideologias e filosofias permissivas. Em suas palavras, "estamos caminhando em direção a uma ditadura do relativismo que não reconhece nada como definitivo e tem como seu maior valor o ego e os desejos de cada um (...) do marxismo ao liberalismo de livre mercado, até o libertarismo, do coletivismo ao individualismo radical, do ateísmo a uma religião vaga, do agnosticismo ao sincretismo e assim por diante".


Ter ou não ter fé são decisões igualmente respeitáveis, sem superioridade de uma em relação à outra


Bem sabemos que essa não é a visão de toda a Igreja Católica. As vozes divergentes e as consideradas heréticas conseguiram se expressar na imprensa -sem ter, entretanto, nem de longe a força da tendência conservadora dominante, responsável pela escolha dos dois últimos papas. Para ficar num só e breve exemplo de uma voz crítica vinda do universo religioso, lembro uma frase de Leonardo Boff, no final de uma entrevista, sobre o pensamento do cardeal Ratzinger, que cito de lembrança: "Quem tem tanta certeza não pode ter misericórdia".
A visão do mundo monolítica do cardeal tem um problema básico. Está subjacente a ela uma apreciação de que tudo na sociedade contemporânea do ocidente, dos comportamentos individuais às mais variadas formas de pensamento, vem nos conduzindo a uma espécie de caos comportamental e ideológico. O remédio capaz de salvar a sociedade estaria no triunfo das certezas religiosas, ou melhor, de uma determinada certeza religiosa.
Na verdade, dentre as ameaças que rondam o mundo atual não se encontra a chamada "ditadura do relativismo". Encontram-se, sim, as visões fundamentalistas, de métodos e matizes variados, mas com alguns traços essenciais comuns. Embora pretendesse distinguir entre o fundamentalismo e a "fé clara", o cardeal Ratzinger representou uma das mais altas expressões dessa corrente, ainda que convenha, em nome da prudência, esperar pelas palavras e ações de seu pontificado. Seja como for, os riscos atuais estão bem presentes no fundamentalismo religioso americano, cuja mistura indigesta de religião e política tem feito estragos consideráveis. E, mais ainda, eles se encontram no fundamentalismo islâmico, combinado com métodos terroristas, cujo impacto é suficientemente conhecido.
Convém esclarecer alguns conceitos. No livro "Limites da Utopia" (Companhia das Letras, 1991), Isaiah Berlin faz uma importante distinção entre relativismo e pluralismo. Berlin afirma que o relativismo corresponde a uma doutrina segundo a qual o juízo de um homem ou de um grupo é algo que se encerra em si mesmo, sem nenhum correlato objetivo determinante de sua validade ou exatidão. Já o pluralismo representa outra coisa: a concepção de que no edifício da história humana existem muitas moradas. Existem muitos valores fundamentais, alguns incompatíveis entre si, assumidos por diferentes sociedades em épocas distintas, ou no interior de uma mesma sociedade, por grupos, classes, igrejas, raças ou indivíduos. Pluralismo de valores não significa a impossibilidade de avaliar seus conteúdos que não estão, entretanto, estruturados hierática e hierarquicamente à margem da mutação histórica.
Tendo em conta essa distinção podemos dizer que, se é justo criticar os aspectos relativistas da sociedade contemporânea ocidental, seu pluralismo é uma conquista preciosa que se encontra em risco. Esse pluralismo baseia-se não no abandono, mas na afirmação dos valores -direito à vida, à liberdade de expressão, à representação política, a condições decentes de existência etc. A partir dessa afirmação, abre-se o campo das opiniões não hierarquizadas acerca de regimes políticos, ideologias, comportamentos ou religiões.
De resto, o mundo da diversidade tem uma riqueza que permite dispensar, para muitas pessoas, o conforto das certezas transcendentais; de tal modo que ter ou não ter fé são decisões igualmente respeitáveis, sem superioridade de uma em relação à outra.
Vou mais longe, lembrando um ensaio de Albert O. Hirschman, "Opiniões peremptórias e democracia", que se encontra no livro "Auto-Subversão" (Companhia das Letras, 1996). Hirschman põe em dúvida um postulado de nossa cultura -o de que é muito importante ter opiniões sólidas. Na contracorrente, ele se pergunta se não é o caso de nos abrirmos às opiniões alheias, de valorizar tanto o fato de ter opinião quanto o de ter mente aberta, de combinar o júbilo por ganhar uma discussão com os prazeres de ser bom ouvinte.
Por último, permitam-me uma reflexão pessoal. Para quem já viveu muitas e tumultuadas décadas, para quem já teve fé em ideologias que tinham a chave da verdade, a observação de Hirschman faz bastante sentido. Não se trata de abandonar as opiniões sólidas, mas de temperá-las com uma margem de dúvida. Parafraseando Boff, quem tem tanta certeza de suas convicções não pode entender e respeitar a convicção do outro -condição indispensável da vida democrática.

Boris Fausto, historiador, é presidente do Conselho Acadêmico do Grupo de Conjuntura Internacional da USP. É autor de, entre outras obras, "A Revolução de 30" (Companhia das Letras).


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