São Paulo, terça, 12 de maio de 1998

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

A seca, os coronéis e as jóias da coroa



Desde o século passado, seca e desenvolvimento do Nordeste vêm sendo tratados com muita demagogia e pouca ação
PAULO PEREIRA DA SILVA

Visitei o Nordeste na semana passada para distribuir alimentos doados pelos metalúrgicos de São Paulo e pude comprovar dois fatos: um otimista, outro revoltante. O otimista é que existe solução para os problemas da seca. O revoltante é que, apesar dos compromissos democráticos e sociais do governo, essa solução não virá em breve -a não ser que o presidente imponha sua vontade-, porque as estruturas atrasadas do Nordeste continuam fortes.
Qual a solução para os problemas da seca, se não podemos controlar a natureza, mandando chover? Ela envolve tecnologia e recursos (que existem). Fazer o que se fez na Califórnia e no deserto de Israel: administrar recursos hídricos, aplicar técnicas de irrigação por gotejamento, plantar frutas cítricas resistentes ao clima semi-árido, organizar os agricultores em cooperativas e agroindústrias, conceder créditos e assistência técnica descentralizadamente para evitar desvios, produzir, abastecer o mercado interno e até exportar, gerando divisas e desenvolvimento.
Para o desenvolvimento, basta investir em setores que exijam uso intensivo de mão-de-obra, explorar o enorme potencial turístico da região e, insisto, a agroindústria. Quanto a esse último ponto, até os mandacarus sabem que ali falta chuva, mas não água: basta bombeá-la de poços ou rios.
Estudos do próprio governo dão conta de que a agroindústria irrigada numa área enorme, de 100 mil hectares, custaria US$ 8.500 por hectare (na Califórnia, seriam quase US$ 60 mil por hectare). Cada hectare irrigado rende US$ 10 mil por ano. Após 2005, só a fruticultura poderia render R$ 10 bilhões/ano.
É evidente que um megaprojeto agroindustrial e turístico no Nordeste precisaria ter à sua frente um superexecutivo. Arrisco-me a dizer que esse homem existe: o próprio presidente do Banco do Nordeste, o cearense Byron Sobrinho, que fez nesse banco a revolução que ninguém conseguiu ainda no mastodôntico Banco do Brasil. E ele poderia ser auxiliado por Ailton Barcelos, outro grande executivo que já passou pelos ministérios da Indústria e do Comércio e da Agricultura e é o atual gestor do Programa de Apoio e Desenvolvimento da Fruticultura Irrigada.
Como se vê, gente não falta dentro do próprio governo. Aliás, para isso se criou a Sudene nos anos 60. Trinta anos depois, tudo só não está rigorosamente igual porque muitos coronéis nordestinos atrasados e industriais sulistas selvagens, que não sabem o que é capitalismo, se tornaram mais ricos; o povo continuou pobre e abandonado.
Entramos no aspecto revoltante: como exterminar esses verdadeiros cânceres, a corrupção e o atraso. Coronéis e industriais sem capital, que dependem de subsídios do Estado, se unem a políticos corruptos, que traficam influência, para impedir o desenvolvimento possível do Nordeste, com justiça social para seu povo sofrido.
Aqui, a questão é cultural e fundiária. Em Alagoas, por exemplo, 27 famílias remanescentes dos velhos senhores de engenho são proprietárias de tudo o que vale a pena possuir no Estado. Sonegam impostos, tratam empregados como escravos, desviam dinheiro para o exterior. Por incrível que pareça, a Justiça não atinge esses senhores.
Outro aspecto importante é a solidariedade. Como qualquer programa sério de desenvolvimento e de combate às secas não dá resultados de um dia para o outro, temos de amparar as vítimas da pobreza, o que só se dá com o que já se começou a fazer: mandar alimentos para eles, ainda que custe caro.
Mas quanto vale uma vida humana? Foi pensando nisso que não perguntei quanto custaria levar para o sertão da Bahia os alimentos que os trabalhadores metalúrgicos e da Força Sindical estão doando. Chegando ao sertão, políticos e padres (todos contra o planejamento familiar, o que é um absurdo) brigaram para distribuí-los. Decidi que nem padres nem políticos fariam isso. Os próprios trabalhadores o fizeram.
O que o governo e o Comunidade Solidária precisam fazer é organizar a distribuição, em vez de centralizá-la. A Força Sindical dispõe-se a integrar esse grande movimento nacional. Só não quer ser usada pelos coronéis da indústria da seca. Digam-nos onde falta comida: nós a entregaremos lá. A primeira-dama Ruth Cardoso e a secretária-executiva Anna Peliano podem, desde já, contar com nossa solidariedade.
Desde o século passado, a seca e o desenvolvimento do Nordeste vêm sendo tratados com muita demagogia e pouca ação. D. Pedro 2º prometeu, às lágrimas, vender até a última jóia da coroa para resolver a questão da seca -mas a tal coroa está hoje num museu, com todas as jóias intactas. Eu voltava do Nordeste refletindo sobre isso quando uma pessoa ao lado, a quem eu falava do meu desânimo, fez uma brincadeira de mau gosto: "A solução pode ser chover pólvora por três dias e, no quarto, cair um raio. Aí começa tudo de novo".
Com vidas, evidentemente, não se brinca. A solução para a seca inclui tecnologia, recursos e vontade. Se FHC quiser, vende algumas jóias da coroa, dá força à Sudene e ao Banco do Nordeste, cobra impostos de quem deve, corta o crédito de quem não merece, faz justiça e passa à história como o presidente que realizou a vontade frustrada (se não foi demagogia) do imperador. Com a palavra, o presidente.

Paulo Pereira da Silva, 42, é presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de São Paulo e vice-presidente da Força Sindical.



Texto Anterior | Próximo Texto | Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.