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MÁRIO MAGALHÃES
Anistia e tortura: uma ferida purulenta
Efemérides são oportunidade
para redescobrir o passado e
aprender com suas lições. São também armadilha: celebram mitificações, protocolos e lugares-comuns. O
calendário de 2004 é gordo: 70 anos da
primeira Constituição depois da República Velha, 60 do Dia D, meio século do tiro de Getúlio, quatro décadas
do golpe militar, duas da Campanha
das Diretas, uma da última curva do
Senna.
No mês que vem, faz 25 anos a canetada com que o general João Baptista
Figueiredo sancionou a Lei da Anistia.
Será uma pena se o país desperdiçar a
chance de encarar uma ferida purulenta e já longeva: a impunidade dos
autores -e responsáveis- de atos de
tortura, assassinato e desaparecimento forçado de oposicionistas no regime militar (1964-85).
Um bom começo é a releitura da lei
6.683, de agosto de 1979. Convencionou-se em círculos amplos interpreta
que teria ocorrido um perdão de mão
dupla: anistiavam-se os punidos por
crimes políticos de 1961 a 1979, bem
como os agentes do Estado que houvessem cometido violência de toda espécie contra aqueles.
Estes estariam abrigados no chapéu
dos "crimes conexos", assim definidos: "crimes de qualquer natureza relacionados com crimes políticos ou
praticados por motivação política".
Nenhum dos 15 artigos, contudo, fala
em tortura.
Seria difícil: a anistia beneficiou
quem foi condenado ou punido de algum modo. Ignora-se a existência de
torturadores processados e castigados
na Justiça devido aos flagelos físicos a
que submeteram prisioneiros.
A anistia foi concedida individualmente. Não se tem notícia de quem tenha pronunciado seu próprio nome,
assumido que amarrou seres humanos no pau-de-arara, seviciou-os com
choques elétricos, matou-os a pauladas, sumiu com seus cadáveres, e tenha requerido perdão legal. Não há
acusação e punição, inexiste anistia.
Considerar a Lei da Anistia como
salvo-conduto aos torturadores poderia sugerir um direito nonsense: o regime que promoveu a barbárie teria a
prerrogativa de se auto-anistiar. Estimularia o preceito segundo o qual o
autor do crime pode ser também autor do perdão a si mesmo.
Voltar os olhos para o que passou
não é exercício de arqueologia política. Ajuda a entender o presente. É difícil acreditar que o emprego disseminado da tortura hoje em dependências policiais não seja herdeiro da impunidade que amparou os torturadores de outrora.
Não basta que a história conte a tortura. É preciso conhecer os algozes e
puni-los, como exemplo às gerações.
Recorrer ainda ao clichê da "fragilidade da democracia brasileira" para desculpar os torturadores é expediente
destinado a eternizar o temor de reabrir feridas. Elas nunca cicatrizaram.
Consagra a hipocrisia o país que
proclama ter a anistia zerado o jogo
para os torturadores, mas não lhes
permite ocupar certos postos da administração pública. Está certo no veto, justamente porque a Lei da Anistia
não os anistiou. Nem deveria. Ao
mandar os velhos torturadores para a
cadeia, a Argentina avisa: nunca mais.
Ao deixar para lá os seus, o Brasil dá
sinal verde a novas tragédias.
Mário Magalhães é colunista da Folha.
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