São Paulo, segunda-feira, 12 de julho de 2004

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TENDÊNCIAS / DEBATES

Pela medicina de qualidade

AFIZ SADÍ

Há vários anos venho alertando alguns cidadãos, com meus humildes escritos na Folha e artigos esparsos, utilizando minha modesta, mas sincera, experiência nesses 50 anos de atividades médicas e universitárias, sobre os reflexos para a classe médica e a população do país da perda de qualidade do ensino médico, a pletora de escolas médicas, o excesso de profissionais nos grandes centros populacionais, a escassez de empregos para os formandos e a falta de respeito das instituições governamentais para com esses cidadãos de nível superior, sacrificados no ensino, no trabalho e há mais de uma década abandonados e sem reposição dos seus vencimentos para uma digna sobrevivência.
Refiro-me aos empregados, professores, assistentes de medicina das universidades federais ou estaduais, sem falar nessa pletora de formandos -cerca de 10 mil anuais- sem trabalho e mendigando um salário para não se envergonharem perante a sociedade, obrigados à procura de dois a três empregos para o sustento da família. Com isso, não conseguem tempo para o estudo e a atualização dos conhecimentos, levando à população uma medicina precária e medíocre.
Haja visto a enorme quantidade de cursos de medicina geral e especializada à disposição dos profissionais -quase todos muito repetitivos, com um mínimo de aproveitamento; alguns deles muito caros em espécie.
Um editorial do Conselho Federal de Medicina mostrou, em abril deste ano, em 14.500 opiniões de médicos, que 55,4% têm mais de três empregos, 62,2% aumentaram a carga horária e, apesar dessa sobrecarga desumana, 51,2% pouco recebem. Vários cumprem jornadas de 60 a 90 horas semanais para essa garantia de remuneração. Creio tratar-se de uma proletarização dos brasileiros. Há também 52,6% dos médicos acusando piora nas condições de trabalho no SUS; 47,4% na qualidade; e 40,7% nos serviços à população.
Não há categoria profissional, creio eu, que permaneça dez anos sem reajuste dos seus vencimentos, e o médico assim se encontra. E os planos de saúde pagam ao médico R$ 25 em média por consulta -e só a pagam depois de 30 ou 60 dias.


Há no país, hoje, 119 escolas médicas, e só nos primeiros cinco meses de 2003 foram abertas oito escolas de medicina

O governo esqueceu-se dessa classe, só lembrada quando algum potentado sofre algo e, assim mesmo, depois da solução do seu problema se esquece do desgraçado do médico que mal pode cobrar pelo seu trabalho. Infelizmente é um trabalho subjetivo; não está vendendo nada, apenas sua cultura, seu conhecimento; não há trocas, barganhas; não há material, não há uso; cura-se o cidadão -da doença, da dor, da cólica-, mas, após esse trabalho, antes ungido por Deus, o médico é inteiramente esquecido. O profissional usa seu conhecimento e se preocupa apenas em resolver o problema alheio, nada mais; isso é razão de orgulho para ele, embora seja totalmente olvidado.
Aquele que só exerce suas funções de ensino e pesquisa nas universidades e que depende da remuneração governamental, infelizmente, está completamente abandonado; consegue, hoje, manter-se a duras penas; não tem reajuste há mais de dez anos -e a miserável inflação que amedronta o Estado brasileiro é a desculpa do governo para esse status quo, sendo que ela atingiu, segundo os entendidos, mais de 150% nesse período.
Por outro lado, a mediocridade médica aumenta a cada ano, porque,com a formação de 10 mil médicos, não há residência para todos, não há pós-graduação nem empregos, o curso é demorado, não há aprendizado suficiente, não há massa crítica ou hospitais de base e, quando o profissional se dá conta, já está praticamente com mais de 30 anos de idade para o início verdadeiro de sua carreira e com dois ou três empregos abaixo de crítica.
Sempre considerei a necessidade de um médico para cada 1.300 habitantes. Embora pelo interior do Brasil isso não aconteça, porque o profissional prefere o grande centro -há cidades onde existe um médico para cada 600, 300 ou 200 habitantes. Daí os diminutos espaços e a coisa piorando cada vez mais: de 1996 a 2003, foram criados 37 novos cursos de medicina, apesar do parecer contrário do Conselho Nacional de Saúde e de todas as instituições médicas.
Há no país, hoje, 119 escolas médicas, e só nos primeiros cinco meses de 2003 foram abertas oito escolas de medicina.
Tudo tende a piorar, pois entram no mercado profissionais inteiramente despreparados. Apenas a título de conhecimento: nos EUA, que tem 300 milhões de habitantes, há hoje 123 escolas médicas, praticamente a mesma quantidade do Brasil, com seus 170 milhões de habitantes.
Faço um apelo aos detentores do poder, para que leiam o trabalho de Abraham Flexner sobre escolas médicas nos EUA e entendam o que aconteceu após o relatório: houve redução de 50% das escolas, objetivando a melhora do ensino e evitando a mediocridade profissional, pois o médico não pode e não deve ser medíocre. Há muitos anos passados, no período militar, fizemos a mesma proposta ao Conselho Federal de Educação, mas não houve repercussão dos nossos apelos. Mais uma vez, apelo àqueles que poderão ainda salvar a qualidade médica no nosso país, para que reduzam as precárias faculdades existentes, não permitam a abertura de novos cursos e remunerem condignamente o profissional de medicina.
Os donos do poder já pensaram no caos que haveria no país, se os médicos todos, sem provocar greves, resolvessem não assinar atestados de saúde e de óbito? Como reagiria o governo perante a população e qual seria a repercussão internacional? Não seria inteligente e acautelador um acordo e ajuste às necessidades de fato e de direito desses profissionais que cuidam da vida humana e, por causa dela, quase nunca se omitem? Espero, com fé em Deus, sensibilidade dos mandatários do poder e vontade verdadeira para uma resolução real e honesta dos problemas de grande parte da família médica deste país.

Afiz Sadí, 69, professor titular de urologia da Unifesp, é membro honorário das academias de Medicina de São Paulo e de Minas Gerais e da Academia Nacional de Medicina.


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