São Paulo, quinta-feira, 12 de agosto de 2004

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OTAVIO FRIAS FILHO

Imprensa livre

Parece óbvia a motivação do governo ao pretender a criação de um Conselho Federal de Jornalismo. Depois da divulgação do caso Waldomiro e de outros episódios escandalosos ou suspeitos, veio uma escalada: a tentativa de expulsar o correspondente Larry Rohter, as "lições" do ministro Gushiken sobre como a imprensa deveria cobrir o governo e agora o projeto voltado a "orientar e disciplinar" (sic) a atividade jornalística.
Tudo isso é parte de um movimento cujo objetivo é emperrar o sistema de freios e contrapesos que está no cerne da democracia, mas incomoda qualquer governo. Daí os esforços para intimidar a Justiça, enquadrar o Ministério Público e, agora, "disciplinar" a imprensa por meio da Federação Nacional dos Jornalistas -entidade sindical legítima, mas com inabalável histórico de atrelamento ao PT.
Muitas pessoas se perguntam, porém, e com razão: se advogados, médicos e engenheiros estão submetidos a conselhos semelhantes, por que não os jornalistas? Estes também não cometem erros graves e não há, em seu meio, profissionais irresponsáveis e ineptos? Claro que sim. Mas a regulamentação da imprensa oferece riscos e dificuldades que não existem no caso de outras profissões.
Há pouca divergência entre médicos sobre como operar um coração, entre engenheiros sobre como construir uma ponte. São atividades de natureza técnica. No jornalismo, essa divergência é constante e maior. Existem muitas maneiras de relatar um fato, inúmeras interpretações a seu respeito. E nenhum critério seguro para definir qual delas é a melhor. O melhor serviço prestado pelo jornalismo é divulgar a riqueza desse contraditório.
A outra peculiaridade do jornalismo é que nenhum governo tem interesse em tutelar advogados, veterinários ou paleontólogos, mas todo governo está vivamente interessado em tutelar jornalistas se lhe for dada a chance. Melhor ainda se puder fazê-lo com a mão do gato, por meio de um entidade títere, de modo a se eximir do desgaste de censurar diretamente a imprensa.
Os conselhos profissionais são descendentes remotos das guildas da Idade Média, uma época em que as corporações se regulavam porque o Estado não estava organizado a ponto de fazê-lo por meio da legislação. O prestígio desses colegiados só voltou a crescer na época do fascismo, quando eles se multiplicaram já então como braços do Estado autoritário.
Entidades como a OAB prestaram valiosos serviços à categoria dos advogados e ao país. Nem por isso toda regulamentação corporativa é boa, nem democrática. Além da legislação em vigor -que pune calúnia, injúria e difamação e estabelece reparações para quem é prejudicado por notícia falsa-, a livre competição entre os meios, a adoção de ouvidores independentes (como o ombudsman deste jornal) e outras formas de auto-regulamentação seriam caminho mais seguro.
Se o Congresso Nacional quiser entregar mais poder ao governo do PT, que ao menos limite as sanções que o conselho poderia aplicar a reprimendas "morais", sem força para cassar o direito de críticos e desafetos de exercer a profissão. Ficaria opinião contra opinião, e não demoraria para as sanções serem exibidas como atestado de independência e integridade pelos que as recebessem...


Otavio Frias Filho escreve às quintas-feiras nesta coluna.


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