São Paulo, quinta-feira, 12 de agosto de 2004

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TENDÊNCIAS/DEBATES

De Copérnico aos embriões

ANTONIO CARLOS MAGALHÃES

Eu não preciso ser submetido aos suplícios do diácono Sanctus para proclamar a minha inabalável fé cristã. Não preciso ser católico, porém, a ponto de sentir-me obrigado a concordar cegamente com todas as posições que a Igreja Católica tem assumido, sobretudo nos últimos tempos, notadamente quando seus ministros se situam diante de temas polêmicos, como a questão do uso científico de células-tronco embrionárias.
Sou, por princípios, contrário ao uso dessa ou de qualquer técnica para a reprodução artificial de seres humanos, mas não posso ser contrário a que se recorra cientificamente a métodos capazes de curar futuramente doenças, em especial as degenerativas, que hoje se consideram incuráveis, por motivos meramente religiosos.


Minha consciência cristã não se sente abalada, muito menos violentada, pelos avanços científicos da humanidade


Minha consciência cristã não se sente abalada, muito menos violentada, pelos avanços científicos da humanidade. Até pelo contrário, sou grato a Deus por nos permitir que, em meio a tanta barbárie e tanta destruição coletiva, ainda existam seres humanos que, na solidão de seus laboratórios, venham buscando, incessantemente, meios de curar boa parte dos males físicos que acometem milhões de seus semelhantes em todo o mundo.
Sou otimista com os avanços das pesquisas com células-tronco, inclusive as células-tronco embrionárias, que se realizam em várias partes do mundo, e não vejo razão por que não possam ser realizadas também no Brasil.
Ninguém pode negar a importância da terapia celular por autotransplante de células-tronco adultas, obtidas da medula óssea, no tratamento de pacientes com infartos do miocárdio e doença de Chagas. O transplante de células-tronco do cordão umbilical no tratamento de doenças degenerativas também tem dado bons resultados, inclusive no Brasil.
Eu pergunto, no entanto, o que é que impede que as células-tronco de embriões se juntem a essas técnicas no horizonte futuro da medicina regenerativa restauradora. Nada impede que, às técnicas já em uso, juntem-se outras, cuidadosamente trabalhadas, em benefício da humanidade. Não vejo, francamente, onde está o alegado desrespeito à espécie humana na utilização de sobras imprestáveis de embriões. Que outra utilidade podem ter essas sobras?
A reboque dos avanços científicos, nossos técnicos estão desenvolvendo suas pesquisas utilizando linhagens ofertadas pela universidade norte-americana de Harvard. Não faz sentido. São células-tronco de embriões descartados em clínicas de fertilização. Lá, como aqui, sua destinação é o lixo. Em outras palavras, nossos cientistas estão recebendo materiais descartáveis de outro país só porque a nossa legislação, a Lei de Biossegurança, recentemente aprovada pela Câmara dos Deputados, veda-lhes -a meu ver, equivocadamente -acesso aos restos embrionários de seu próprio país.
Há uma tendência histórica da Igreja Católica de reagir contrariamente a qualquer experimento científico envolvendo o ser humano em suas múltiplas dimensões -de certa forma, eu acho até compreensíveis as reações contrárias de seus setores mais conservadores às pesquisas com restos de embriões descartados em clínicas de fertilização. Essas reações, contudo, jamais deveriam -nem devem- servir de óbice aos avanços da ciência, desde que postos a serviço exclusivamente da cura de doenças atualmente incuráveis. Concordo que se deva cercar o assunto de extremos cuidados, para evitar possíveis desvirtuamentos, e não vetá-lo, pura e simplesmente, como se fez na Câmara Federal.
Evoco o herético Copérnico para recordar que, se dependesse de certos setores da igreja no passado, até hoje a Terra seria considerada o cento do sistema planetário.

Antonio Carlos Magalhães, 76, é senador pelo PFL da Bahia. Foi presidente do Senado (1997-99 e 1999-2001), governador do Estado da Bahia (1991-94) e ministro das Comunicações (governo Sarney).


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