São Paulo, quinta-feira, 12 de agosto de 2004

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Populismo e eleições

GILBERTO DUPAS

A democracia tem se desgastado com a emergência de tendências populistas em países da América Latina e da Europa. Nos próprios EUA, o discurso radical e fundamentalista do governo Bush tem sido utilizado para justificar ações justiceiras e restringir direitos civis. Essas novas retóricas autoritárias são um tipo de resposta às decepções diante das promessas vãs sobre as vantagens da globalização.


Os populistas alegam que os valores progressistas da social-democracia são uma ameaça à nação e à identidade étnica


Na Europa, o populismo virou um brado xenófobo em prol da preservação da identidade e do modo de vida clássico das famílias, agora ainda mais assustadas com os padrões de salários e direitos sociais que os países do Leste ajudarão a rebaixar. René Cuperus lembra-nos de que seus teóricos aproveitam-se do vácuo deixado pela dissolução de identidades, pelo aumento das desigualdades e pela decepção com os políticos para estabelecer os ideais de autoritarismo da nova direita européia. O fim da confrontação ideológica criou um clima totalmente despolitizado e os populistas foram conquistando o apoio de parcelas significativas de diferentes grupos de cidadãos que se sentem excluídos da cena política. Não há mais grandes ideais a invocar diante dos quais sacrifícios valham a pena. Os populistas prometem de forma eficiente e dramatizada, temperada por um exacerbado carisma autoritário do tipo "eu faço".
Esse quadro tem alterado a forma da comunicação e a maneira de fazer a política. Uma lógica maniqueísta de diferenciação de "nós contra eles" e palavras de ordem em linguagem simples contrapõe-se às explicações complexas dos tecnocratas. No caso da Europa e dos EUA, o populismo surge como alternativa para manter a identidade comum em face da ameaça do multiculturalismo e da globalização, explorando o medo e a insegurança. Essas reações podem envolver até intelectuais de renome, como no caso da recente manifestação de Sammuel Huntington sobre o perigo que a invasão de trabalhadores mexicanos representaria para os valores dos norte-americanos brancos, ameaçados no cerne weberiano do seu "espírito capitalista da ética protestante". Os populistas alegam que os valores progressistas da social-democracia são uma ameaça à nação e à identidade étnica; e que hoje pagam o preço por terem recebido de braços abertos o credo neoliberal disfarçado em terceira via, que provocou a perda dos valores e a "praga" da imigração. Já na América Latina, enfatizam-se mensagens do tipo "tolerância zero" -aliás, importadas dos EUA.
Como os espaços de ação governamental são cada vez mais estreitos e a lógica econômica do capitalismo competitivo global tudo engolfa, essa situação está fazendo com que a democracia social perca sua capacidade de cumprir seu principal objetivo político e ideológico, já que não consegue mais determinar parâmetros mínimos de justiça, soberania e identidade que dêem espaço ao exercício da cidadania.
O caso do governo Lula é um bom exemplo. Eleito com promessas amplas de dobrar as imposições do neoliberalismo e resgatar a dívida social do país, está sendo obrigado a governar rigidamente, de acordo com os mais duros ditames do credo ortodoxo. Apenas na área de política externa ele tem tido espaço para exercitar um discurso e uma ação inovadores, aproveitando com competência os espaços temporariamente abertos pelos impasses e vazios causados pelo poder hegemônico radicalizado.
Além do mais, a mídia contemporânea esvazia a relação entre o indivíduo e os partidos políticos, assumindo funções que a eles pertenciam. Os programas eleitorais transformam os candidatos em simulacros. Os temas são promessas impossíveis, desqualificando a reflexão e a análise das circunstâncias.
Em resumo, a democracia social vai se afastando de parcelas significativas do eleitorado e dos grupos de interesses que lhe serviam de suporte no passado, abrindo espaço a populismos e pregações radicais à esquerda ou à direita, tanto mais amplo o espectro quanto mais pobre e desigual o país. Os políticos europeus, incapazes de comprometer o Estado com questões públicas ou reformas estruturais, acabam restritos a dramatizar mínimas diferenças e valorizar os eventos simbólicos da mídia.
As técnicas populistas de mobilização de massa são eficazes e vêm ganhando terreno; Cuperus chega a recomendar, em nome do futuro ameaçado da democracia, que os partidos de centro-esquerda, já que não conseguem lidar com as causas da marginalização socioeconômica e da polarização das comunidades, pelo menos redimensionem seus programas e esquemas de comunicação para tentar canalizar o ressentimento das populações, fazendo concessões à retórica populista -uma espécie de maquiagem que torne as esquerdas mais semelhantes aos radicais de direita.
Num contexto não tão diferente, é o que faz a Igreja Católica, com o novo estilo "padre Marcelo" para conter os avanços evangélicos. Todas essas manobras ajudariam na salvação das forças progressistas e no aprimoramento da democracia social, ou apenas poderiam apressar o desgaste de ambas? A conferir em futuras eleições, pelo mundo afora.


Gilberto Dupas, 61, economista, é coordenador-geral do Grupo de Análise da Conjuntura Internacional da USP e presidente do Instituto de Estudos Econômicos e Internacionais. É autor de, entre outros livros, "Renda, Consumo e Crescimento" (Publifolha).


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