São Paulo, sexta-feira, 12 de agosto de 2005

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TENDÊNCIAS/DEBATES

A elite somos nós

MARIA RITA KEHL

Quais as conseqüências da crise dita do PT (mas que envolve integrantes de quase todos os outros partidos) sobre a sociedade brasileira? Tomemos uma cena corriqueira ocorrida em julho, quando o também réu Roberto Jefferson denunciava um esquema de corrupção armado dentro do Partido dos Trabalhadores.
Em uma calçada de Copacabana, dois rapazes pobres engraxavam os sapatos de um turista. Finda a operação, um deles anunciou o preço: "Fifty, mister". Parei para ver o desfecho da negociação: estariam mesmo cobrando 50 reais por um lustre nos sapatos do turista? Intimidado, o estrangeiro ofereceu uma nota de dez. Nisso, o engraxate esticou a mão e arrancou a nota "certa" -50 reais- da carteira do freguês, que teve o bom senso de sair fora. Quem não teve bom senso fui eu, que não consegui deixar de protestar: "Cara, você vai cobrar 50 reais por engraxar os sapatos do gringo?".


As elites querem desestabilizar o governo, vem dizendo Lula em discursos recentes. A culpa é das elites? Que elites?


É óbvio que os dois achacadores vieram para cima de mim. Enquanto o engraxate berrava: "Se eu quiser, cobro cem, cobro mil e a senhora não se meta com a gente", o outro argumentou: "Vai buscar seu "mensalão", madame, que esse aqui é o nosso".
Não: o PT não é (diretamente) responsável pela existência dos achacadores em Copacabana. Nem pelo tráfico de drogas, nem pelas quadrilhas do crime organizado, nem pela violência gratuita que só faz aumentar no Brasil. Os esquemas de caixa dois, as compras de votos e os casos particulares de enriquecimento com dinheiro público não foram inventados pelo PT nem inauguraram a violência social brasileira.
Mas não é difícil compreender que a bandidagem escancarada entre representantes dos interesses públicos que se elegeram em nome de ideais de esquerda autorizam definitivamente a delinqüência no resto da sociedade. O termo "mensalão" já se tornou sinônimo de patifaria generalizada: se até "eles", os petistas, metem a mão no dinheiro público, estamos todos à deriva. É a lei do "salve-se quem puder" interpretada à luz (luz?) da desilusão.
Há quem pareça feliz por descobrir que o PT, que sempre cobrou ética na política quando era oposição, agora também se revela corrupto. Para esses, é como se o pior crime cometido por integrantes do partido não fosse a corrupção atual, e sim as exigências de transparência do passado. Pior que um moralista, só um falso moralista: fingindo indignação, políticos do PFL, do PSDB, do PP e até do Prona vêm a público dizer, como a formiga à cigarra: você não cantou no verão? Pois agora dance!
Mas a indignação da sociedade, que pode rapidamente descambar em autorização cínica da falta de ética (ou restaura-se a moralidade...), tem outro sentido. A desilusão e a revolta contra o PT são mais graves do que contra outros partidos que, agora ou em outros tempos, tenham se revelado corruptos porque foi o PT que acenou com a bandeira da transparência e do respeito ao bem público, que não é outra senão a bandeira da democracia verdadeira, exercida em nome do povo.
É compreensível que, quando o governo eleito em nome da esperança e da transformação se revela tão corrupto quanto os outros (a roubalheira de Collor, a "privataria" de FHC), a decepção seja muito maior.
O presidente Lula, que demorou a reagir ante os escândalos denunciados na CPI dos Correios, parece ter retomado o pulso, não sobre seu governo, mas pelo menos sobre si mesmo, tentando retomar sua antiga ligação com as camadas pobres da população.
As elites querem desestabilizar o governo, vem dizendo Lula em discursos recentes, enquanto o seu, o nosso partido (pois ainda me identifico com a banda não-podre do PT) hesita em expulsar Delúbio Soares e fica nas mãos do presidente da Câmara dos Deputados, o malufista Severino Cavalcanti, para adiar parte das cassações anunciadas.
A culpa é das elites? Que elites? Há um setor das elites, antigos inimigos do Partido dos Trabalhadores, que pouco se incomoda com as bravatas do presidente, a quem "engolirão" novamente de bom grado se os juros continuarem favorecendo a enorme concentração de capital em suas mãos.
Mas há também uma nova elite no país: somos nós, os petistas no poder. Não participo do governo, mas escrevo "nós" para não me descomprometer com o partido em que sempre votei e ajudei a eleger em 2000 e em 2002.
A elite, hoje, somos nós. Não me refiro aos novos ricos do PT, aos que aumentaram o patrimônio ou ganharam carros importados de empresários "amigos". Refiro-me à elite governante, responsável por democratizar a relação do Estado com a população, por construir o país por meio de concorrências públicas limpas, por gerir o dinheiro do povo em nome dos interesses do povo.
Essa elite tem o dever de tomar o pulso da situação. Punir responsáveis. Pedir desculpas à sociedade. Modificar radicalmente a estrutura burocrática e de poder dentro do partido, como pretende o atual presidente Tarso Genro. Há uma enorme diferença simbólica quanto aos efeitos sobre o tecido social entre os crimes políticos e os crimes comuns. Quando a elite governante não respeita a lei que ela própria representa, a desmoralização que se instaura corrompe a sociedade inteira.

Maria Rita Kehl, 53, é psicanalista e ensaísta. Escreveu, entre outros livros, "Ressentimento" (Casa do Psicólogo).


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