São Paulo, sexta-feira, 12 de agosto de 2005

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Diálogo partido

GILCIO MARTINS, LUIZ ESMANHOTO e SERGIO SALAZAR

A demissão do reitor do ITA (Instituto Tecnológico de Aeronáutica), professor doutor Michal Gartenkraut, comunicada por lacônico telegrama no final de julho sem explicações por parte da Aeronáutica, causa uma incômoda perplexidade para os que conhecem a instituição e o excelente trabalho desenvolvido pelo reitor desde sua posse, em 2002.
O ITA foi concebido como uma escola civil vinculada diretamente a uma organização militar. Inspirado no MIT (Massachusetts Institute of Technology), era um ousado projeto de cooperação internacional iniciado logo após o fim da Segunda Guerra Mundial.


A demissão do reitor do ITA, comunicada sem explicações por parte da Aeronáutica, causa uma incômoda perplexidade


Seu formato, uma escola civil acolhida em âmbito militar, viria a pontilhar sua existência de modo peculiar a partir de 1964. Naquele ano, foram presos pela primeira vez, por motivos políticos, alunos e professores. Seguiram-se seus desligamentos arbitrários pelo Ministério da Aeronáutica, sem ser ouvida a reitoria do ITA. Atos semelhantes repetiram-se em 1965 e 1975, atingindo ao todo 21 alunos e dois professores.
A ditadura criaria alguns hábitos duradouros, por vezes demonstrados de forma espetacular. Em 1996, a direção do CTA (Centro Técnico Aeroespacial, campus onde reside o ITA) patrocinou, sob pretexto fútil, uma operação militar de invasão da residência dos alunos e o fechamento do centro acadêmico.
Esses atos mostram como o diálogo pode ser por vezes tenso entre a estrutura militar e a administração do ITA. Tornam evidente que a tensão criativa do modelo original precisaria ser aperfeiçoada. O dr. Michal, ele próprio um ex-aluno da década de 60, preocupado em restaurar o lado criativo da junção civil-militar, elaborou as linhas mestras de um plano estratégico, contando com o apoio de um renomado grupo de doutores. Tais estudos originaram a proposta de um novo regulamento.
Este regulamento alterava dispositivos que dizem respeito a sua autonomia. Fixava o tempo de mandato dos reitores, a serem escolhidos por Comitês de Busca, em vez de simples indicação do Comando da Aeronáutica. Modernizava seu papel no desenvolvimento tecnológico nacional. Enfatizava ações para melhor inscrever o ITA no roteiro das pós-graduações.
A proposta de regulamento foi entregue à direção do CTA em 2004 e de lá não se moveu. Mas o reitor se moveu e pôs em prática algumas de suas formulações, das quais é exemplo a nova dinâmica nos cursos de pós-graduação, que em pouco tempo elevou expressivamente a pontuação do ITA no mapa da Capes.
Um de seus movimentos, entretanto, encontrou forte resistência em alguns setores da Aeronáutica: a proposta de revisão para as injustificadas punições políticas ocorridas durante a ditadura.
O reparo das punições foi considerado um ato simbólico essencial para reinaugurar o diálogo reitoria/Aeronáutica. Uma clara mensagem comum de respeito à liberdade de expressão no Estado de Direito.
Michal percebeu a importância do tópico e teve a cautelosa audácia de colocá-lo em prática. "Cautelosa audácia" porque foi um tema trabalhado durante quase dois anos por uma comissão de ex-alunos, civis e militares, e um ex-reitor. Suas proposições de reintegração dos punidos foram aceitas pela Congregação e devidamente amparadas pela Comissão de Anistia.
Como primeiro passo, em 25 de junho passado, os ex-alunos com o curso completo, quatro desligados há 40 anos e dois há 30 anos, foram diplomados em comovente sessão, à qual foram mais de 600 convidados, em boa parte antigos colegas de turma.
O aspecto festivo da cerimônia, porém, ocultava uma grave dissonância entre o Deped (Departamento de Pesquisa e Desenvolvimento), ao qual o ITA se subordina, e a reitoria do ITA, sinal de que antigas rupturas permaneciam sem costura.
Para o diretor do Deped, tenente-brigadeiro Sergio Bambini, a diplomação era o constrangido cumprimento de uma determinação legal da Comissão de Anistia. Para a reitoria, era um desejado "rito de passagem" de uma instituição que inauguraria um novo diálogo com a Aeronáutica.
O tenente-brigadeiro Bambini presidiu a cerimônia por incumbência de seu cargo, mas, no discurso de encerramento, manifestou publicamente sua contrariedade, o que ensejou início de vaia, imediatamente controlada por cortesia dos convidados.
Seu discurso foi a primeira resposta aos estudos elaborados dois anos antes. A resposta definitiva veio 30 dias depois, quando o comandante da Aeronáutica, tenente-brigadeiro Luiz Carlos Bueno, promoveu a demissão do reitor a pedido do tenente-brigadeiro Bambini, sem explicações. A tentativa de renovação do diálogo estava quebrada.
A demissão do reitor Michal nessas circunstâncias exige que se acrescente ao incômodo da perplexidade inicial uma profunda indignação. Sua intempestividade desmerece o ITA, a ausência de motivação justa diminui o apreço que se deve às autoridades públicas e sua descortesia é um insulto à comunidade acadêmica do país.

Gilcio Martins, 64, Luiz Esmanhoto, 62, Sergio Salazar, 56, ex-alunos do ITA desligados por motivos políticos em 1964, 1965 e 1975, em nome e autorizados por todos os demais colegas desligados do mesmo modo.


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