São Paulo, quarta-feira, 12 de agosto de 2009

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ELEONORA DE LUCENA

Faz de conta

DUAS VISÕES disputam a avaliação da crise de proporções históricas que se instalou de forma aguda há quase um ano. De um lado, os adeptos dos superpoderes do mercado tentam passar uma borracha nos fatos e fingem que quase nada aconteceu.
De outro, os defensores do Estado buscam uma fórmula para regulamentar o capitalismo.
Os liberais fazem um desenho otimista do quadro. Dizem que o pior já passou, que o mercado vive um momento de recuperação e que a vida vai ser doce em breve. Afinal, os bônus gorduchos voltaram a ser pagos e o fantasma dos bancos quebrados aparentemente sumiu.
Sim, o desemprego é um problema -reconhecem. Mas isso fica para depois. Alegam que as empresas vão prometer contratar depois que a confiança for restabelecida.
Até lá é preciso paciência com essa estatística. Não importa que ela esteja batendo marcas históricas na Europa e nos Estados Unidos.
Nesse cenário róseo, fica escondida a amazônica inundação de dinheiro público. Graças a esse socorro inédito, bancos e empresas conseguiram sobreviver. Mas isso é tido como página virada, e as baterias se voltam agora contra o alvo de sempre -o déficit público, a gastança governamental desmedida.
Chega a ser ridículo. Depois de mendigarem bilhões aos governos (e serem salvos), os liberais insistem em que o problema é o Estado. Imagino o nó teórico que faculdades de economia e administração estejam enfrentando para encontrar coerência no discurso que, por décadas, foi tido como pensamento único: a eficiência está no mercado; o Estado só atrapalha.
Do outro lado, os estatistas esfregam as mãos. Após anos de ostracismo, enxergam a possibilidade de voltar a serem ouvidos. Mas o que fazer além de tentar tirar o sistema do abismo? Onde está a alternativa? Qual será o rearranjo político e econômico daqui para a frente?
Os simpatizantes dessa linha concordam que as coisas estão melhorando, mas não afastam a emergência de tremores pela frente. Afinal, só quem vive num mundo de faz de conta pode defender que tudo voltará a ser como antes. A crise deixou evidente que há uma mudança crucial em curso: a relação Estados Unidos-China.
Barack Obama resumiu o problema: o mundo já não pode contar com a recuperação do consumo dos EUA para sair do buraco. A crise imobiliária deixou a fratura exposta: a questão é a erosão na renda dos norte-americanos. Isso provocou a corrida ao endividamento e a explosão de mais uma bolha.
Assim, a virada no jogo sairá do avanço do consumo chinês. Deve durar décadas, pode até levar a uma mudança da moeda de referência no mundo, mas sustentará uma nova ordem. Enquanto isso, é preciso escapar do reino do faz de conta e encarar a realidade.


ELEONORA DE LUCENA é editora-executiva da Folha. Hoje, excepcionalmente, não é publicado o artigo de Delfim Netto.



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