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ELEONORA DE LUCENA
Faz de conta
DUAS VISÕES disputam a
avaliação da crise de proporções históricas que se
instalou de forma aguda há quase
um ano. De um lado, os adeptos dos
superpoderes do mercado tentam
passar uma borracha nos fatos e
fingem que quase nada aconteceu.
De outro, os defensores do Estado
buscam uma fórmula para regulamentar o capitalismo.
Os liberais fazem um desenho
otimista do quadro. Dizem que o
pior já passou, que o mercado vive
um momento de recuperação e que
a vida vai ser doce em breve. Afinal,
os bônus gorduchos voltaram a ser
pagos e o fantasma dos bancos quebrados aparentemente sumiu.
Sim, o desemprego é um problema -reconhecem. Mas isso fica
para depois. Alegam que as empresas vão prometer contratar depois
que a confiança for restabelecida.
Até lá é preciso paciência com essa
estatística. Não importa que ela esteja batendo marcas históricas na
Europa e nos Estados Unidos.
Nesse cenário róseo, fica escondida a amazônica inundação de dinheiro público. Graças a esse socorro inédito, bancos e empresas
conseguiram sobreviver. Mas isso
é tido como página virada, e as baterias se voltam agora contra o alvo
de sempre -o déficit público, a gastança governamental desmedida.
Chega a ser ridículo. Depois de
mendigarem bilhões aos governos
(e serem salvos), os liberais insistem em que o problema é o Estado.
Imagino o nó teórico que faculdades de economia e administração
estejam enfrentando para encontrar coerência no discurso que, por
décadas, foi tido como pensamento
único: a eficiência está no mercado;
o Estado só atrapalha.
Do outro lado, os estatistas esfregam as mãos. Após anos de ostracismo, enxergam a possibilidade de
voltar a serem ouvidos. Mas o que
fazer além de tentar tirar o sistema
do abismo? Onde está a alternativa? Qual será o rearranjo político e
econômico daqui para a frente?
Os simpatizantes dessa linha
concordam que as coisas estão melhorando, mas não afastam a emergência de tremores pela frente. Afinal, só quem vive num mundo de
faz de conta pode defender que tudo voltará a ser como antes. A crise
deixou evidente que há uma mudança crucial em curso: a relação
Estados Unidos-China.
Barack Obama resumiu o problema: o mundo já não pode contar
com a recuperação do consumo
dos EUA para sair do buraco. A crise imobiliária deixou a fratura exposta: a questão é a erosão na renda
dos norte-americanos. Isso provocou a corrida ao endividamento e a
explosão de mais uma bolha.
Assim, a virada no jogo sairá do
avanço do consumo chinês. Deve
durar décadas, pode até levar a
uma mudança da moeda de referência no mundo, mas sustentará
uma nova ordem. Enquanto isso, é
preciso escapar do reino do faz de
conta e encarar a realidade.
ELEONORA DE LUCENA é editora-executiva da Folha. Hoje, excepcionalmente, não é publicado o artigo de Delfim Netto.
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