São Paulo, domingo, 12 de setembro de 2004

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Reincluir a população de rua

CLÁUDIO HUMMES

A cidade de São Paulo foi ferida pelo massacre de membros do povo de rua, mortos violentamente na calada da noite, enquanto dormiam nas ruas e praças do centro, nas madrugadas de 19 e 22 de agosto passado. Apurar e punir esse crime bárbaro constitui o mínimo do que deve ser feito, junto com nossa dor e oração pelas vítimas.
Entretanto urge também olhar de frente a real situação do nosso povo de rua e definir programas para seu pleno resgate.
Nosso apelo é por políticas públicas com programas eficazes, prioritários e permanentes de reinclusão social e econômica, plena e conclusiva. Programas emergenciais e assistenciais de melhoria de suas condições são muito bem-vindos e absolutamente necessários, mas, porque sozinhos não conseguem tirá-los da rua, são insuficientes, pois não concluem sua reinclusão.
De fato, programas emergenciais e assistenciais foram multiplicados e aperfeiçoados ultimamente na cidade. Exemplificando, cito o aumento, com cerca de 7.000 vagas, e a melhoria, com práticas sociais mais adequadas, dos albergues públicos municipais -agora seis- e um do Estado, tanto assim que nunca as vagas estão plenamente preenchidas, segundo informação do governo municipal -ainda que, se todos os moradores de rua fossem aos albergues, ficariam faltando cerca de 3.000 vagas. Há muita gente de rua que, por motivos variados, resiste a ir aos albergues.
Também a alimentação ficou mais acessível, com os restaurantes Bom Prato, do governo estadual, e com a distribuição gratuita de alimentos por grupos e associações de solidariedade. Cresceu o número e a dedicação de obras sociais, ONGs e grupos religiosos católicos e de outros credos que acolhem. Mas tudo isso junto não consegue tirar da rua esses excluídos e reincluí-los na sociedade. Ora, a rua degrada inexoravelmente a condição dessas pessoas, que se sentem afundar sem esperança.
Acompanhado pelo padre Júlio Lancellotti e pelos padres dirigentes da Aliança de Misericórdia e da Toca de Assis, que se dedicam aos moradores de rua, no dia 25 de agosto encontrei-me com o governador Geraldo Alckmin e sua equipe para discutir o problema e tomar decisões. Resultou uma nova parceria entre governo e igreja em favor do resgate pleno do povo de rua.
Primeiramente, chegamos juntos à conclusão de abrir imediatamente 500 vagas de emprego numa frente de trabalho do governo do Estado. Os que serão acolhidos nessa frente receberão, além do salário mensal de R$ 280, uma cesta básica, vale-transporte e cursos de qualificação profissional. Quer-se assim iniciar um resgate que vá além da duração legalmente possível de uma frente de trabalho. Quer-se tornar os participantes autônomos, capazes de se reintegrarem ao mercado de trabalho no final do processo. Talvez seja necessário agregar outros programas sociais de recuperação dos participantes, para que se consolide o resgate pleno. Além disso, já que há mais de 10 mil moradores de rua, dever-se-á ampliar o programa no futuro.


A população de rua é a que mais necessita de amparo, para poder voltar a ser incluída na sociedade
Outra providência decidida pelo governador foi abrir novos espaços construídos para acolher esses pobres, no centro da cidade, em parceria com a Igreja Católica, especificamente com a Aliança de Misericórdia e a Toca de Assis. Em favor dos moradores de rua que precisam de assistência médica, especialmente os portadores do HIV, portadores de problemas mentais e doentes de câncer, foi constituída uma parceria com a Unifesp, a Secretaria Estadual de Saúde e a Toca de Assis.
Mas há muitos moradores de rua que, por idade ou enfermidade, não podem voltar ao mercado de trabalho. A esses o poder público terá que assumir plenamente em instituições próprias e apropriadas, talvez em parceria com instituições religiosas ou da sociedade civil organizada, onde possam viver com dignidade. Isso parece um sonho, tanto mais que sempre haverá pessoas que acabarão de uma ou outra forma na rua. Por isso esses programas de reinclusão social precisarão ter respaldo em lei, com verba própria prevista em orçamento, em permanente execução.
Contudo muitos não querem sair da rua, seja por doença mental, seja pela deterioração e perda de auto-estima que os estimula à autodestruição, seja pela ilusão de maior liberdade, menos compromissos, fuga de situações às quais não querem voltar. Para esses é preciso programas próprios de recuperação da auto-estima e da convicção de que a rua não tem como oferecer condições de dignidade e cidadania suficientes para um ser humano em nossa sociedade atual.
Tudo isso só será possível se se der prioridade à pessoa humana. Obviamente, muitas outras coisas são necessárias, até mesmo cuidar das ruas e praças da cidade, mas, quando se destinam os recursos disponíveis, a prioridade, repito, devem ser as pessoas. Ora, a população de rua é a que mais necessita de amparo, para poder voltar a ser incluída na sociedade e ali gozar, como todos os demais, de vida digna e do exercício de sua cidadania.
Entretanto não posso concluir sem me referir ao bárbaro atentado terrorista numa festa escolar em Beslan, Ossétia do Norte, na Rússia, que resultou no massacre indiscriminado de civis, dentre os quais, entre mortos e feridos, centenas de crianças. A violência brutal do terrorismo procura apavorar a sociedade mundial, torná-la refém de sua crueldade desumana, perversa e mortífera, não recuando nem diante de crianças inocentes e indefesas, arrastando-as sem piedade para o pavor, o massacre e a morte em seus atentados insanos.

Dom Cláudio Hummes, 70, é cardeal-arcebispo metropolitano de São Paulo. Foi arcebispo de Fortaleza (CE) e bispo de Santo André (SP).


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