São Paulo, domingo, 12 de setembro de 2004

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TENDÊNCIAS/DEBATES

A anistia revisitada

JARBAS PASSARINHO

Em outubro de 1978 o presidente Geisel enviou a mensagem que, relatada pelo eminente senador José Sarney, transformou-se na emenda constitucional nš 11. Restabeleciam-se todas as liberdades fundamentais, apanágio da democracia plena, inclusive a liberdade da imprensa.
Ao sucessor, general João Figueiredo, caberia ultimar o processo visando à reconciliação dos brasileiros, que a luta ideológica fratricida havia dividido. Fui seu líder no Senado. Participei de todas as reuniões preparatórias. A anistia começou por uma frase de Figueiredo, dita a jornalistas: "Lugar de brasileiro é no Brasil". Foi a senha para o preparo da mensagem ao Congresso. Não era rendição do governo à pressão popular, diferente da mobilização da multidão das Diretas-Já. Nem essas conquistaram seu objetivo, e Tancredo, paradoxalmente, foi eleito indiretamente pelo Colégio Eleitoral, em que tínhamos maioria.
Havia, sim, a fadiga do poder, evidenciada no resultado progressivamente declinante nas urnas. Vencidas as guerrilhas comunistas, restabelecidas as liberdades, não mais se justificaria a resistência de uma minoria que se opunha à anistia.
Havia, porém, que antes revogar o bipartidarismo. Do contrário, todas as lideranças que, no exílio, resistiram, viriam engrossar o MDB, e a Arena poderia perder a maioria residual que ainda tinha. Assim, Brizola viria certamente restabelecer o Partido Trabalhista. Golbery fez mais. Conquistou Ivete Vargas, e Brizola perdeu a legenda, tendo de fundar o PDT.
Com a reforma partidária concluída, passamos ao texto da mensagem da anistia. Petrônio e Golbery foram os artífices da anistia recíproca dos crimes conexos, pois Figueiredo se batia por esquecimento de parte a parte, para a paz da família brasileira.
O MDB, contra o projeto do governo, apresentou emenda substitutiva, tendo Ulysses Guimarães como primeiro signatário. Surpreendeu-nos a leitura, pois era menos ampla que o projeto do governo. Thales Ramalho revelou que foi um erro do jurista (cujo nome nunca revelou) que redigiu a emenda. Excluía da anistia Leonel Brizola e Miguel Arraes.


A anistia começou por uma frase de Figueiredo, dita a jornalistas: "Lugar de brasileiro é no Brasil"
Em entrevista à imprensa em agosto de 1999, disse: "Nosso projeto foi um erro jurídico, mas, se fosse aprovado, nós faríamos uma lei complementar estendendo a anistia a Brizola e Arraes".
Nunca foi explicado, pelos líderes do MDB, o "erro jurídico", dando margem à suspeita de que, de fato, eles receavam que os exilados lhes tomassem a liderança política. Verdade ou não, o fato concreto e inegável é que o projeto do governo era, nesse aspecto, mais amplo. Anistiava "a todos quantos, no período compreendido entre 2 de setembro de 1964 e 31 de dezembro de 1978, cometeram crimes políticos ou conexos como estes".
Coincidindo com a Constituinte, começou a ampliação da lei de 1979. Promoveram-se a generais, de maneira duvidosa, oficiais punidos no ciclo militar iniciado em 31 de março de 64. Depois, até um capitão, sem curso de Estado-Maior.
Com FHC, especialmente no seu segundo mandato, a ampliação da anistia aos vencidos tinha contrapartida no crescente delírio acusatório contra militares que haviam combatido as facções comunistas na luta armada. Bastava um singular acusador e carreiras profissionais eram interrompidas. Seguiu-se o festival de indenizações. Dois mil já embolsaram, no todo, mais de R$ 50 milhões. Só de retroativos -informa a imprensa- a Comissão de Anistia, instalada em 2001, pediu recursos no valor de R$ 1,4 bilhão. Não é tudo, porém, pois os pedidos chegam a 60 mil, provocando advertência pública do presidente do PT, José Genoino: "Não se confunda indenização com promoção financeira".
Preocupado com o vulto dos pedidos, estimado em R$ 3 bilhões, incluindo as pensões retroativas, está o governo Lula. A um único bravo molestado pelo autoritarismo, a indenização retroativa chegou a R$ 1,64 milhão. Antigos críticos do ciclo militar, entre perplexos e indignados, galhofaram: "O Brasil é o único lugar do mundo em que os comunistas recebem indenização por perder a luta armada".
Ao propor a anistia, Figueiredo pressupôs esquecimento recíproco. Houve. Dos vencedores...


Jarbas Passarinho, 84, é coronel da reserva. Foi governador do Pará (1964-65) e senador pelo Estado em três mandatos (1967-74, 1975-82 e 1987-95), além de ministro da Educação (governo Médici), da Previdência (governo Figueiredo) e da Justiça (governo Collor).


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