São Paulo, quinta-feira, 12 de outubro de 2006

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Nada justifica a violência contra as crianças

MARIE-PIERRE POIRIER e PAULO SÉRGIO PINHEIRO

No Brasil, em 2000, houve, em média, 16 homicídios por dia contra crianças e adolescentes. Desse total de mortos, 70% eram negros

HOJE, NO Brasil, celebramos o Dia da Criança, um dia especial de alegria e carinho, quando crianças e adolescentes ocupam o centro de nossas atenções. Este é também um momento para que nos questionemos se, em todos os dias do ano, elas são valorizadas e protegidas como deveriam ser.
No mundo inteiro, meninos e meninas sofrem com as diferentes formas de violência. O primeiro estudo global sobre a violência contra a criança, apresentado ontem na Assembléia Geral das Nações Unidas, quer promover uma grande virada: o fim de qualquer justificativa de adultos para praticar a violência contra crianças, seja ela entendida como uma tradição, seja camuflada como uma forma de disciplina.
O relatório foi solicitado pelo secretário-geral da ONU, Kofi Annan, e tem o apoio do Unicef, da OMS, do Alto Comissariado para os Direitos Humanos, além de outras agências, entidades e governos. Resulta de esforços em cada continente para entender como a violência impacta a vida da criança e do adolescente no lar, na escola, na comunidade, no trabalho e nas instituições e, principalmente, como ela pode ser prevenida.
As agressões físicas ou verbais ameaçam a sobrevivência e o bem-estar das crianças. Muitas vezes, são escondidas. O abuso sexual, por exemplo, ocorre a portas fechadas, praticado por pais, parentes e conhecidos. As crianças sofrem em silêncio. As cicatrizes físicas, emocionais e psicológicas podem gerar sérias implicações para seu desenvolvimento, saúde e capacidade de aprender. Elas lhes ensinam que a violência é aceitável, perpetuando essa prática. Portanto, nenhuma forma de violência contra crianças e adolescentes é justificável, e todas as suas manifestações devem ser evitadas.
É papel do Estado, da sociedade e da família desenvolver políticas, ações e atitudes que promovam a proteção integral das crianças. A família deve ser fortalecida, por ser o primeiro local de proteção da criança e do adolescente, onde se deve aprender formas não violentas de convivência.
A sociedade precisa superar a visão que banaliza e naturaliza a violência, os preconceitos de gênero, raça, condição econômica e idade. O Estado, por sua vez, deve promover acesso a serviços e investir em políticas públicas integradas de prevenção, atacando as causas da violência.
Também deve garantir a responsabilização dos agressores, rompendo com o ciclo da impunidade. No Brasil, é fundamental fortalecer o sistema de garantia dos direitos, que, com o sistema de segurança pública e Justiça, é co-responsável pela proteção integral de meninos e meninas.
Além disso, é preciso investir num sistema de coleta de dados, com recortes por raça, etnia, situação econômica e local de moradia das vítimas, para que as políticas de enfrentamento da violência possam ser mais bem planejadas e implementadas. As próprias crianças precisam ser ouvidas. No Brasil, uma estratégia de enfrentamento da violência contra a criança que comece pela meta de reduzir os homicídios, atacando suas causas subjacentes, poderia ter um efeito irradiador sobre as outras formas de violência. A consulta nacional organizada pelo Unicef em 2005, em preparação para o estudo global, concluiu que o país se destaca negativamente em todas as comparações internacionais pelo alto índice de assassinatos de adolescentes.
Apenas em 2000, foram cometidos, em média, 16 homicídios por dia contra crianças e adolescentes (Datasus, 2000). Dessas vítimas, 14 tinham entre 15 e 18 anos. Do total de mortos nessa mesma faixa etária, 70% eram negros, revelando mais uma das formas de violência, a discriminação racial. Essa agenda tem especial relevância para o Unicef.
Situações assim são um grave atentado aos direitos humanos de crianças e adolescentes que traz, à vida do país, um atraso em seu desenvolvimento e o distancia do cumprimento da declaração e dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio. O desafio agora é dar prioridade à integração de políticas de diferentes setores, para garantir a cada criança e adolescente o direito a crescer e se desenvolver plenamente, livre da violência.


MARIE-PIERRE POIRIER, mestre em economia pela Universidade de Paris 1, é representante do Unicef (Fundo das Nações Unidas para a Infância) no Brasil. Foi representante do Unicef na Namíbia e em Moçambique.
PAULO SÉRGIO PINHEIRO, 62, é especialista independente do secretário-geral da ONU para elaboração do Estudo das Nações Unidas sobre a Violência contra Crianças. É pesquisador associado do Núcleo de Estudos da Violência, da USP. Foi secretário de Estado dos Direitos Humanos (governo Fernando Henrique Cardoso).


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