São Paulo, terça-feira, 12 de novembro de 2002

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Argumentação e debate

LUIZ CARLOS BRESSER PEREIRA

Quando Fernando Henrique Cardoso assumiu a Presidência do Brasil, já tínhamos uma democracia consolidada, mas ele será lembrado como um grande presidente, porque presidiu a transição da democracia de elites para a democracia de opinião pública.
Estava muito claro para ele que um governante tem de olhar para duas restrições quando governa. A "restrição econômica", que lhe impõe severos limites, e a "restrição democrática", que o obriga a considerar sempre o povo.
Lembro-me de uma frase que ele me disse, no final de 1998, quando sua popularidade despencava em virtude da crise de balanço de pagamentos em que o país mergulhava: "Com esses índices, meu poder está diminuindo". Foi neste quadro que ele tomou sua decisão mais corajosa e mais acertada no plano econômico, a de desvalorizar o real.
Fernando Henrique governou sempre atento ao que lhe dizia a sociedade, e está terminando seu governo prestigiado por ela. O êxito maior ou menor de suas iniciativas, porém, dependeu em grande parte da clareza que a própria sociedade tinha em relação à matéria. E essa clareza dependia da complexidade do problema e do grau de debate público havido e de consenso alcançado. A sociedade lhe dizia que educação e saúde eram fundamentais, que era preciso enfrentar o problema da pobreza e que a reforma agrária era necessária, e por isso ele investiu uma parte considerável dos seus esforços nessas direções.
Escolheu seus melhores auxiliares para assumir a direção dos respectivos ministérios. E realizou uma obra notável nessas áreas.
A sociedade dizia-lhe também que as reformas institucionais eram necessárias e ele procurou fazê-las avançar. Como, porém, o conteúdo das reformas não estava suficientemente discutido, como não havia uma posição clara da opinião pública a respeito, como não se formara um consenso nacional, algumas das reformas não foram adiante.
Havia consenso, por exemplo, sobre a necessidade de uma reforma tributária, mas seu conteúdo variava de cabeça para cabeça. O mesmo ocorreu com a reforma da Previdência. O desenho que os técnicos do setor partilhavam era incompetente. Só no seu segundo mandato os caminhos em relação a essas duas reformas se tornaram suficientemente claros, mas já não havia tempo ou condições políticas para levá-las adiante.


Em todo o seu governo, porém, o que vimos, sempre, foi a prática reiterada da governança democrática


Finalmente, era consenso na sociedade que, controlada a inflação, era necessário e possível retomar o desenvolvimento. Entretanto, diante da natural limitação dos recursos internos, não mais a opinião pública, mas os economistas e empresários sob influência externa chegaram a um quase consenso de que esse desenvolvimento teria que se basear na poupança externa. E se caminhou nesse sentido. Esta, porém, era uma visão equivocada e mal discutida, explicando-se assim seus resultados econômicos pouco satisfatórios.
Em todo o seu governo, porém, o que vimos, sempre, foi a prática reiterada da governança democrática. O respeito à lei e à opinião pública. A observância de princípios éticos rigorosos. A busca do diálogo e da negociação. Havia sempre quem aconselhasse uma atitude mais executiva, que em certas circunstâncias era inevitável, mas esta era a exceção.
Como notável sociólogo que é, e democrata convicto, o presidente preferia ouvir a todos e buscar, entre as idéias desencontradas, um vetor que melhor representasse a perspectiva da sociedade. Contribuiu, assim, decisivamente para o avanço da democracia brasileira.
Lula nos promete coisa semelhante. Afirma que seu governo será marcado pelo diálogo e pela negociação. E enfatiza a negociação que marcou toda a sua vida, desde que assumiu a liderança dos metalúrgicos do ABC, nos anos 70.
Agora a negociação terá que ser feita com toda a nação. Sugiro que mais importantes do que a negociação serão o debate público e a argumentação que nele ocorrer. Na política, a negociação é fundamental. As democracias avançadas combinam os compromissos com os consensos, que são alcançados por meio da argumentação nas diversas arenas do debate público.
Para governar, o PT terá uma grande vantagem em relação a partidos mais conservadores. Não precisa recorrer ao populismo para ter o apoio do povo, porque boa parte desse povo sabe que as decisões que estão sendo tomadas são o que melhor se pode fazer pelos pobres. Isto, porém, não elimina o desafio -que é o de todos os políticos democráticos- de convencer a maioria de que se está no caminho certo.
Por meio da argumentação no debate público não apenas se logra persuadir o outro, mas se encontram terceiras soluções inovadoras que permitem que as duas partes ganhem.
Lula tem insistido que não governará sozinho, mas, para que seu governo tenha o êxito que todos desejamos, é necessário que o debate público e a argumentação se transformem em uma prática generalizada. E que as reformas e as políticas públicas sejam fruto não só do que foi assegurado na campanha eleitoral, mas principalmente desse debate público intenso que as democracias permitem e exigem.
Ficou bastante claro, no governo Fernando Henrique, que a qualidade das decisões depende desse debate. Da mesma forma, no governo Lula, o bom desenho das reformas e a competente definição das políticas que se quer implementar melhorarão muito com ele.


Luiz Carlos Bresser Pereira, 68, é professor de economia na FGV-SP e professor visitante de teoria política na USP. Foi ministro da Ciência e Tecnologia e da Administração Federal e Reforma do Estado (governo FHC), além de ministro da Fazenda (governo Sarney).

E-mail: bresserpereira@uol.com.br



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