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JOSÉ SARNEY
Lobato e Twain
Embora já tenha esfriado o
debate sobre a decisão do Conselho Nacional de Educação,
que vê em "Caçadas de Pedrinho", de Monteiro Lobato, racismo, não quero deixar de
opinar sobre o assunto.
Poucos no Brasil têm sido
defensores da raça negra como eu. Acho, inclusive, ser a
escravidão a maior mancha de
nossa história. Desde que entrei na política apoiei Afonso
Arinos, e fui o criador da Fundação Palmares, dedicada à
promoção da raça negra. Fui o
autor do primeiro projeto de
cotas raciais.
O que acontece com Lobato
lembra-me um caso clássico
da educação americana: o
combate a "As Aventuras de
Huckleberry Finn", de Mark
Twain. Desde que foi publicada, em 1884, essa continuação
de "As Aventuras de Tom Sawyer" causou polêmica, foi considerada imprópria e retirada
de currículos e bibliotecas.
A reação de Twain (Samuel
Clemens, no civil) foi tratar o
assunto com humor: "Expulsaram Huck de sua biblioteca
como "lixo e só adequado às
favelas". Isso vai vender com
certeza umas 25 mil cópias".
Mas a discussão continuou.
Muitas vezes, os que o combatem mais querem utilizar o negro para brilhar do que para
defendê-lo.
Huck foi um extraordinário
sucesso. De vendas e literário.
Hemingway declarou que
"Huckleberry Finn é o livro de
onde brota toda a moderna literatura americana", onde
"nada foi escrito de tão bom".
Mas a polêmica continua até
hoje. Tudo porque Twain inovou recriando a linguagem de
cada personagem com as características da vida no Mississippi, inclusive incorporando
o tratamento a um dos personagens centrais, o "nigger"
Jim, escravo fugido.
No entanto, o livro é uma
sátira terrível, onde Jim é o
bom caráter, em meio a uma
multidão de brancos que representam todos os defeitos
da sociedade escravocrata.
Além de excluído de bibliotecas, o livro tem enfrentado
todo tipo de censura -e sobrevivido como um dos livros
mais lidos nas escolas americanas. Sobre a polêmica há toneladas de textos, mas creio
que o definitivo seja o julgamento do juiz Stephen Reinhard: "Palavras podem machucar, particularmente epítetos racistas, mas um componente necessário de qualquer
educação é aprender a pensar
criticamente sobre ideias
ofensivas. Sem essa habilidade, se pode fazer pouco para
responder a elas".
Lobato está em boa companhia. A criação literária é um
processo próprio, e tramas,
personagens e cenários existem somente na imaginação
do autor. Nem por isso deixam
de refletir realidades e ser instrumento de mudanças na sociedade. "Caçadas de Pedrinho" iluminou a vida de milhões de brasileiros, despertando neles o sentido da convivência racial e da igualdade
entre brancos e negros.
JOSÉ SARNEY escreve às sextas-feiras nesta
coluna.
jose-sarney@uol.com.br
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