São Paulo, quinta-feira, 12 de dezembro de 2002

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TENDÊNCIAS/DEBATES

ROBERTO ROMANO

Ciência e tempo

Após a sabatina na Folha com o presidenciável Luiz Inácio da Silva, em agosto último, foi-me perguntado o que eu pensava de sua pessoa. Minha atitude tem sido a mesma em face do PT e seus dirigentes: apoio no relativo aos fins e crítica aos atos e falas. Esta, penso, deve ser a norma dos intelectos livres. A bajulação deve ser afastada, bem como as acusações preconceituosas. Respondi ao repórter que o candidato do PT era um estadista em potencial, considerada a sua disposição para o diálogo com todos os setores do país e do estrangeiro.
Um ocupante da mais alta magistratura não pode ignorar a voz de amplos segmentos econômicos, políticos, científicos. Comportamentos imperiais terminam em desastre. O diálogo não basta. É preciso que decisões sejam tomadas em tempo certo para garantir a democracia. Como diz Elias Canetti, o regime democrático sempre foi acusado pelos seus inimigos como aquele "em que se fala demais" e pouco se resolve. O encanto das ditaduras reside, em parte, na decepção das massas com os Parlamentos e os intermináveis discursos dos governantes. A democracia precisa da eficácia e do correto uso do tempo.
Esperamos que Luiz Inácio da Silva seja um estadista em ato. Ora, um erro de sua parte pode ser letal para o país. Um homem de Estado deve receber ajuda de todos os setores que se movem no interior do mesmo Estado.
Quando se trata de política científica e tecnológica, o Executivo precisa contar com o conhecimento dos grupos científicos competentes. Os pesquisadores devem fornecer cenários para as decisões do governante. Quanto menor o erro na determinação desses cenários, melhor para o Estado e a sociedade. O tempo do político não pode ser desperdiçado com erros. É preciso que toda a comunidade científica se empenhe na busca de atos coletivos eficazes.
Mas os pesquisadores devem ter licença para utilizar a cronologia em registro diferente do da política. Se tempo é dado aos cientistas, permitindo-lhes empreender vários caminhos, antes de estabelecer determinados procedimentos, tempo é poupado ao governante, que não escolherá vias pouco testadas. Se o estadista impede que o trabalho científico tateie nos laboratórios e demais setores de pesquisa, ele amarga quando escolhe políticas públicas que não foram minuciosamente elaboradas.


O governo eleito, sobretudo o presidente, deve manter o diálogo com o mundo da pesquisa e da técnica


A lógica política é a de errar o mínimo possível, mas a lógica da ética científica é a de garantir aos seus integrantes o direito de buscar conhecimentos e métodos. Se eles não têm a livre investigação, a sua própria ética é suprimida. Este é o âmago da autonomia na cátedra universitária. O Estado não pode, com risco de se tornar mais fraco e menos eficaz, tirar dos pesquisadores sua ética essencial, que se define enquanto busca, e não como uma coleta de certezas engendradas em tempo fixado burocraticamente.
No período FHC ocorreu a diminuição drástica do tempo atribuído à pesquisa, sobretudo a destinada à formação dos novos cientistas. Na Capes, se um indivíduo atrasa seis meses a sua dissertação ou tese, todo o programa em que ele se inscreve é punido com diminuição de recursos. O Estado brasileiro, assim, nega os seus próprios interesses, porque os saberes coletivos abreviados são pouco discutidos, experimentados, postos à prova. Os cenários resultantes são frágeis e incompletos.
Se a Capes, no período FHC, assumiu a função de abreviar o tempo na pesquisa, com resultados desastrosos que apenas hoje começam a ser percebidos (teses sem o rigor necessário, pesquisas inacabadas etc), o CNPq não conseguiu realizar a sua função plena.
Exemplo: ele contou em 2001 (cf. Edital Universal do CNPq) com R$ 30 milhões para uma demanda de R$ 600 milhões. Em 2002, a situação se agravou, na mais séria crise financeira de sua história. Ele não implementou auxílios para participação em importantes eventos científicos e bolsas de diversas modalidades. O Pronex sofreu graves descontinuidades no aporte de recursos. O Programa Institutos do Milênio assegura apenas parte da demanda científica nacional e não foi ampliado. As bolsas de pós-graduação e de produtividade em pesquisa diminuíram entre 1995 e 2001 e não tiveram reajuste nos valores.
Se adicionarmos a quase insolvência das universidades federais, os prejuízos para os laboratórios e bibliotecas com a desvalorização do real, os problemas enfrentados por fundações estaduais como a Fapesp, concluímos que os resultados do governo FHC no campo científico, universitário e tecnológico deixam muito a desejar.
O governo eleito, sobretudo o presidente, deve manter o diálogo com o mundo da pesquisa e da técnica. Desafio enorme é traduzir o saber dos laboratórios em inovações tecnológicas na indústria e no comércio, propiciando mais conhecimentos para a massa popular. Mas apenas o diálogo, sem atos em tempo certo, pode resultar em maior descrença. É preciso que os ocupantes do Planalto pensem como estadistas, e não mais como contabilistas.

Roberto Romano, 56, é professor titular de ética e filosofia da Unicamp.


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