São Paulo, sábado, 13 de janeiro de 2001

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TENDÊNCIAS/DEBATES

O governo, com a MP 2.088-35, estava tentando intimidar o Ministério Público?

NÃO

Os heróis da decência

FERNANDO TOURINHO NETO

Há procuradores da República que se acham heróis da decência, arautos da moralidade, julgam-se acima do bem e do mal, esquecidos de que, como alertou Agnes Heller, "o herói da decência é personagem típico de sociedades totalitárias ou em vias de tornarem-se mais totalitárias e menos liberais". Ao pretender salvar o Brasil, adotam uma posição de histeria moral.
Pretendem esses procuradores da República passar por cima das leis e da Constituição, sem respeitar a pessoa do réu, sem esperar o resultado do processo, na ânsia enlouquecida de agradar o povo, que está estarrecido diante de tanta corrupção, do fato de o dinheiro público ser tratado como particular, de tanta violência, amargando uma miséria infame, vendo, a cada dia que passa, as desigualdades sociais aumentando.
Esquecem -ou se fazem de esquecidos- que "ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória". Para que alguém seja considerado culpado, é preciso que o juiz o tenha condenado e que dessa decisão não possa mais haver recurso. "Um homem não pode ser considerado culpado antes da sentença do juiz", já dizia Beccaria no século 18.
Esses procuradores acusam humilhando, destroçando o homem que ainda não foi declarado culpado, arrastando nessa humilhação a família do réu, esquecidos de que "nenhuma pena passará da pessoa do condenado" (Constituição, art. 5º, inciso XLV). Esquecidos, também, estão de que é assegurado aos presos o respeito à integridade moral (Constituição, art. 5º, inciso XLIX). Igualmente se esquecem de que "ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente" (o juiz), conforme dita a Constituição no art. 5º, inciso LIII. O procurador da República não tem a atribuição de condenar ninguém, e sim de pleitear a condenação, apresentando provas que levem a essa conclusão.
Esses procuradores manipulam o clamor público. Se há meras suspeitas, convidam a imprensa, contam-lhe essa suspeita e, com base em reportagens que de concreto nada têm, ingressam com a ação de improbidade. Daí ser certo o juiz ouvir o réu antes de receber a ação. Correto, assim, o disposto no art. 17, parágrafo 6º, da lei 8.429, de 1992, acrescentado pela medida provisória 2.088-35, de 27 de dezembro de 2000, baixada pelo legislador solitário.
Somos contra o meio que foi utilizado para assim dispor, medida provisória, pois usurpa atribuição do Congresso; mas, no mérito, a disposição está correta. Se a ação foi recebida pelo juiz, após ouvir o réu, não se pode mais dizer que essa ação é manifestamente improcedente. O parágrafo 11 do art. 17 da lei 8.429/92, acrescentado pela MP em questão é, pois, inócuo. Fogo que não queima. Assusta a quem está assustado.
Ademais, a figura do litigante de má-fé está prevista no art. 18 do Código de Processo Civil: "O juiz ou tribunal, de ofício ou a requerimento, condenará o litigante de má-fé a pagar multa não excedente a um por cento sobre o valor da causa e a indenizar a parte contrária". O procurador da República que age de má-fé, sabendo que o réu é inocente ou que contra ele não há qualquer indício e sim meras conjecturas, deve ser punido.
Aquele que detém um poder extraordinário está impulsionado a dele abusar, prejudicando a todos, principalmente a sociedade.
Não quer a sociedade, não querem os juízes impedir o Ministério Público de proceder a investigações, mesmo às que são indesejáveis ao governo. O que se quer é que não haja a prática de terrorismo, própria das ditaduras, ou como aconteceu na época da Revolução Francesa. Não é acusar sem qualquer indício e depois, no curso do processo, procurar os indícios; deve-se, sim, fixar com exatidão a conduta do acusado, descrevendo-a claramente, e indicar as provas.
A acusação deve ser feita com fundamento. Afirmação sem fundamento é inútil. Ajam os procuradores da República desassombradamente, buscando a punição dos corruptos, mas em conformidade com as normas constitucionais, respeitando os direitos humanos, e terão os aplausos de toda a sociedade.
Fernando Tourinho Neto, 57, é presidente do Tribunal Regional Federal da 1ª Região. Foi presidente da Associação dos Juízes.


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