São Paulo, quinta-feira, 13 de janeiro de 2005

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DEMÉTRIO MAGNOLI

Estadunidenses

Eles eram americanos , foram rebaixados a norte-americanos e hoje não passam de estadunidenses. Os arautos do antiamericanismo querem extirpar a América do nome dos EUA, reduzindo-os à descrição anódina do seu sistema federal. A privação do nome próprio equivale a uma eliminação simbólica do inimigo e funciona como prelúdio ideológico do extermínio prático, que permanece como ideal.
América, ao contrário do que pensam os antiamericanos, é o nome legítimo dos EUA. A Revolução Americana instaurou a primeira república contemporânea e antecipou a Revolução Francesa. O princípio da igualdade política dos cidadãos, realizado na América, contrastava com o Antigo Regime, vigente na Europa das dinastias. A revolução bolivariana veio mais tarde e tomou como seu modelo a república norte-americana. Os "Pais Fundadores" enxergavam os EUA como portadores da missão de difundir a liberdade. Esse conceito contém as sementes do espírito cruzadista que ainda anima a política externa americana, mas não deixa de refletir a grande ruptura com o mundo dos privilégios de sangue que inaugurou a nossa era. De certo modo, somos todos americanos.
Uma das fontes do antiamericanismo é a degeneração do pensamento de esquerda. Sob Stálin, a esquerda abjurou a sua própria tradição cosmopolita e iluminista, aprendeu o catecismo nacionalista e decorou a cartilha da rejeição à democracia. A Revolução Americana foi lançada à lata de lixo da história, enquanto se celebrava a União Soviética, a China, o Camboja, Cuba e as ditaduras nacionalistas do Terceiro Mundo.
A outra fonte, mais recente, é a contraposição caricatural entre União Européia e EUA. Segundo o neoconservador americano Robert Kaplan, os americanos "são de Marte", e os europeus, "de Vênus". Num registro paralelo, mas de sinal invertido, o filósofo alemão Jurgen Habermas interpretou a "constelação pós-nacional" européia como uma fortaleza da liberdade e do direito erguida contra o belicismo hobbesiano dos EUA.
O antiamericanismo é o argumento dos embusteiros. A França justifica seu apoio militar a ditadores africanos pela missão de conter o avanço da influência anglo-saxônica. O Brasil explica sua operação de sustentação do governo haitiano inventado pela Casa Branca pela necessidade de ocupar um espaço que seria preenchido por tropas americanas!
Na prova de geografia da primeira fase do vestibular da Fuvest, a banca examinadora colou o selo da USP sobre um mapa colhido na internet que representaria a "visão de mundo americana". Desse mapa vulgar, emerge a imagem de uma potência militar agressiva, bárbara e simplória, engajada unicamente na captura de recursos naturais e econômicos espalhados pelo mundo. O antiamericanismo difunde-se incontrolavelmente nesses tempos sombrios da Doutrina Bush, fornecendo um discurso político para o charlatanismo intelectual e uma ideologia substituta para os órfãos do "socialismo real".
Os EUA são uma "república imperial", dilacerada pela tensão entre as instituições democráticas da república e a dinâmica expansionista do império. Essa tensão, que impôs a retirada do Vietnã, manifestou-se há pouco na decisão da Corte Suprema de reconhecer o direito dos presos de Guantánamo à revisão judicial de seu estatuto jurídico. É ela que começa a corroer as engrenagens da rede internacional de tortura construída pela Casa Branca no quadro da "guerra ao terror". Os antiamericanos são incapazes de entender isso.


Demétrio Magnoli escreve às quintas-feiras nesta coluna.
magnoli@ajato.com.br


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