São Paulo, Quarta-feira, 13 de Janeiro de 1999
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REAL DESGOVERNADO

As dificuldades da economia brasileira atingiram um novo grau na escala da crise. Sob uma terceira onda de ataque ao real, o país chega a uma etapa que, para vários analistas, configura uma crise de governabilidade.
O primeiro abalo sofrido pela âncora cambial foi no início de 95, quando, após a crise mexicana, houve uma primeira sangria de reservas.
O remédio então utilizado para recompor as bases da política econômica foi a elevação dos juros e a renovação da aposta na correção apenas gradual da taxa de câmbio. Aquela crise desdobrou-se numa pequena recessão, acompanhada por uma grave crise bancária. O ajuste fiscal, já então necessário, ficaria adiado.
Num ambiente internacional favorável, a alta dos juros surtiu efeito e o governo voltou a acumular reservas, ainda que a dívida pública passasse a crescer de modo exponencial. Mas a âncora cambial estava salva.
Veio, em 97, a crise asiática. Novamente, a alta dos juros foi o antídoto. Entretanto, elevar as taxas já não era suficiente. O governo surpreendeu e apresentou novas medidas de ajuste fiscal. Salvou o real e reforçou a aposta na âncora cambial. O Brasil escapou de ser a "bola da vez".
A segunda onda de ataque viria só no ano passado, após a crise russa.
Dois aspectos tornaram-se evidentes. Primeiro, o governo não cumpriu o prometido no célebre "pacote 51", do final de 97. E os juros perderam eficácia como linha de resistência aos ataques contra a moeda.
Os investidores passaram a notar cada vez mais os efeitos da política de juros altos. Passaram a pesar a acumulação de dívida pública, a fragilização de empresas, a inadimplência e a queda na arrecadação.
Sem gerar divisas via comércio exterior, em face de um mercado de capitais globalmente batendo em retirada, a defesa da política cambial com juros altos ficou por um fio.
Essa segunda onda de ataque ao real, como se sabe, falhou apenas porque o governo dos EUA, em conjunto com o FMI, interveio. A fuga de capitais foi enfrentada com uma mobilização inédita de recursos garantidos por governos e organismos multilaterais: US$ 41,5 bilhões.
A condição para a volta da confiança dos investidores era que o governo afinal fizesse o ajuste fiscal. Juros altos seriam toleráveis, por algum tempo, se houvesse corte de gastos e aumento na arrecadação.
Monitorado pelo FMI, o governo apresentou sua proposta de ajuste fiscal. Mas as dificuldades que tem enfrentado para viabilizá-la produziram nova crise de confiança.
O xadrez político não se resume às agruras do pacote fiscal. Há dificuldades políticas internas à própria base governista. As disputas por espaço, já visando à sucessão, começaram cedo. A reforma ministerial parece não ter dissolvido ressentimentos nos maiores partidos. Faltam lideranças vigorosas no Congresso.
Iniciou-se um movimento mais intenso na sociedade civil contra a recessão e os juros altos, a nova safra de governadores deu margem a uma oposição mais forte e o desemprego explosivo, com toda a sua carga de desarranjo social, mina as bases políticas sem as quais ajustes dolorosos, como o esperado pelos credores externos, ficam ainda mais difíceis.
A deterioração do ambiente político não passou despercebida aos investidores externos. A insurgência do governador de Minas Gerais foi mais um sinal de desgoverno no país.
A fuga de capitais voltou a se acentuar com a perda de confiança na capacidade de o governo defender o real. O ataque à moeda resulta, pois, do diagnóstico de que o país atravessa uma crise de governabilidade. Resta saber se uma mudança mais ousada da política econômica, contemplando a possibilidade de uma desvalorização mais agressiva da moeda, seria capaz de restaurar a credibilidade perdida.
Exemplos de desvalorização descontrolada não faltam, da Tailândia ao México. Os riscos são enormes. Mas aumenta o peso dos que se perguntam se vale a pena correr tais riscos, com o apoio do FMI, numa economia em recessão com deflação, cujo governo não tem uma dívida pública em dólares elevada demais.
A recessão se aprofundaria? Essa já é uma hipótese no horizonte. Ao menos seria possível aliviar a pressão financeira, uma vez desarmada a política de defesa do câmbio irrealista com base em juros insuportáveis.
Entretanto, uma nova política de câmbio é em si apenas parte da crise de confiança. A governabilidade depende do ajuste fiscal. Apenas na medida em que o presidente Fernando Henrique recobrar a capacidade de articulação política será possível apostar na superação da crise.


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