São Paulo, Quarta-feira, 13 de Janeiro de 1999
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Constituição não autoriza retenção de recursos


A agressão à Constituição, mais uma vez, é absurdamente aplaudida pelos néscios


EROS ROBERTO GRAU

O médico responsável não deve diagnosticar doença e prescrever medicamentos sem que, anteriormente, tenha examinado o paciente. Da mesma forma, o advogado, para que se torne merecedor de respeito, tem o dever de silenciar, deixando de emitir opinião a respeito de ato ou contrato que não tenha analisado. O não-cumprimento desse dever o transforma em mero curioso, a quem não abate o temor de cair no ridículo e de não ser levado a sério.
A União e o Estado de Minas Gerais celebraram, em fevereiro de 1998, um contrato segundo o qual este último se confessa devedor de uma importância e a União se obriga a refinanciá-la.
As cláusulas 17ª e 18ª desse contrato (a) autorizam o Bemge, depositário dos recursos financeiros do Estado, em caráter irrevogável e irretratável, a transferir ao Banco do Brasil quantias suficientes à liquidação das obrigações financeiras pactuadas. Também (b) outorgam poderes, em caráter irrevogável e irretratável, à União para, por si ou por intermédio do Banco do Brasil, (1) transferir as cotas das receitas tributárias a que se refere o artigo 159 da Constituição, creditadas no Banco do Brasil S/A; (2) requerer a transferência de recursos, até o limite do saldo existente, da conta de centralização de receitas próprias do Estado no Bemge; e (3) transferir as cotas das receitas tributárias a que se refere o item 1 do anexo à lei complementar nº 87/96, creditadas no Banco do Brasil S/A.
A regra, tratando-se de bens públicos, é a da sua impenhorabilidade.
Não obstante, a emenda constitucional nº 3/93 acrescentou um quarto parágrafo ao artigo 167 da Constituição de 1988, com o seguinte teor: "É permitida a vinculação de receitas próprias geradas pelos impostos a que referem os arts. 155 e 156, e dos recursos de que tratam os arts. 157, 158 e 159, I, a e b, e II, para a prestação de garantia ou contragarantia à União e para pagamento de débitos para com esta".
Esse preceito (excepcionando a regra contemplada no inciso 4º desse mesmo artigo 167, que veda a vinculação de receita de impostos a órgão, fundo ou despesa) permite, a Estados-membros e municípios, a vinculação de determinadas receitas e recursos para a prestação de garantia ou contragarantia ou para pagamento de débitos à União.
De outra parte, o parágrafo único do artigo 160 da Constituição do Brasil autoriza a União e os Estados a condicionarem a entrega de recursos constitucionalmente atribuídos aos Estados, ao Distrito Federal e aos municípios ao pagamento de seus créditos. Evidentemente não autoriza a retenção pura e simples desses recursos, expressamente vedada pelo artigo 160, caput.
Apesar disso, aquelas cláusulas 17ª e 18ª do contrato não instrumentam a contratação, no sentido jurídico, de garantia nenhuma, mas sim a formalização de uma compensação convencional, em termos irrevogáveis e irretratáveis. Ora, a compensação assim convencionada -troca de um crédito por outro- consubstancia forma excepcional de extinção da obrigação. Sua operacionalização implica supressão do exame judicial de razões que eventualmente deva o devedor arguir, no sentido de se opor ao exercício, pelo credor, de direito a pagar-se mediante a retenção de créditos do devedor.
Por isso, essa compensação não encontra fundamento no parágrafo 4º do artigo 167 da Constituição de 1988, além de causar violação ao disposto em seu artigo 160, e essas cláusulas são adversas ao interesse público, já que impedem o Estado de Minas Gerais de recusar o pagamento do crédito da União em razão da necessidade de permanecer a cumprir a função pública.
Pois é certo que a administração está vinculada tanto pelo dever de prover a continuidade das funções estatais quanto pelo dever de boa administração, de modo que, diante de situação de insuficiência de recursos financeiros para pagar todas as suas dívidas, deverá fazê-lo em relação às essenciais à continuidade dos serviços públicos, não se eximindo de questionar quanto possa ser juridicamente contestado.
A avença de compensação convencionada no contrato celebrado entre a União e o Estado de Minas Gerais, estranha ao disposto no parágrafo 4º do artigo 167 e expressamente vedada pelo artigo 160, é nula, visto que a União não está simplesmente condicionando a entrega dos recursos referidos nos artigos 157 e 159 da Constituição ao pagamento de créditos seus, porém usando esses recursos, apoderando-se deles, para pagar-se.
A violência que praticam os trêfegos, manifestando-se sobre a questão sem conhecer o contrato, só é menor do que a agressão à Constituição, que, mais uma vez, é absurdamente aplaudida pelos néscios.
Eros Roberto Grau, 58, professor titular da Faculdade de Direito da USP, é autor de "A Ordem Econômica na Constituição de 1998".


Texto Anterior: TENDÊNCIAS/DEBATES
Paulo Rabello de Castro: Itamar, Jamanta e os russos

Próximo Texto: Painel do leitor
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.