São Paulo, sábado, 13 de março de 2004

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

TENDÊNCIAS/DEBATES

É preciso flexibilizar a meta de inflação?

SIM

Chega das sanguessugas!

ROLAND VERAS

Recordo-me, saudoso, da ácida e exata comparação histórica tantas vezes feita pelo prof. Ruben Dario Almonacid: "Lamentavelmente, no Brasil ainda se usam as taxas de juros como se fazia com as sanguessugas no passado -entendia-se que elas curavam qualquer doença, especialmente quando não se tinha um bom diagnóstico".
Por mais de dois milênios, o uso das sanguessugas foi recorrente na prática médica, tendo sido empregadas amplamente para os mais diversos problemas de saúde, do combate a dores de cabeça ao tratamento do câncer. Ainda recentemente, nos séculos 18 e 19, o uso "médico" das sanguessugas atingiu seu ápice. Conta-se que era tamanha a crença no poder das sangrias para a solução de quadros clínicos, que houve anos em que mais de 30 milhões de "leeches" (nome inglês desses parasitas) teriam sido embarcadas da Alemanha em direção aos EUA, com finalidades curativas.
Já há mais de um século, entretanto, os avanços na ciência médica mostraram que por trás da maioria das doenças humanas não está o excesso de sangue. Tampouco se entende hoje que a hemorragia possa ser revigorante para os enfermos.
O Brasil é ainda jovem, mas está gravemente doente. As dores são agudas, com mais de 20% de desemprego em algumas metrópoles e notável ociosidade industrial. Recém-saído de um tratamento antiinflacionário, o país tenta se recuperar de uma terapia cambial bastante agressiva e prolongada, em que o uso das sanguessugas das taxas de juros foi constante para a atração de financiamento externo.
O remédio cambial foi abandonado, mudou a equipe médica, mas o quadro de debilidade e as técnicas medievais permaneceram. Assumindo o "caso" com promessas de recuperação espetacular, talvez milagrosas demais para excluir as suspeitas de curandeirismo, usaram juros altos, agora, para tranqüilizar o paciente. A tranqüilidade teve custo alto, com queda do poder de compra dos brasileiros, manutenção de altas taxas de desemprego e medíocres níveis de investimento. Houve, reconhece-se, evolução positiva em duas áreas: controle orçamentário e saldos comerciais. Os principais focos infecciosos dos corpos nacionais modernos, déficits público e externo, aparentemente estão controlados. Com esse novo quadro, que justificativas técnicas existiriam para a manutenção de juros tão altos?
Efetivamente, a revolução ocorrida na medicina moderna não encontra analogia na política macroeconômica. Se os médicos alteraram o tratamento assim que entenderam melhor as causas das doenças, entre os economistas o uso das sanguessugas ainda parece uma boa prática.
Tem-se observado no país, em parte pela voracidade tributária do governo, em parte pelo simples realinhamento de preços relativos, um receio infundado do ressurgimento de um processo inflacionário. Orientados por rígidos protocolos elaborados nos centros de economia estrangeiros, nossos doutores insistem na necessidade do tratamento com sanguessugas. Quem já teve contato com a metodologia de definição e implementação do sistema de metas inflacionários sabe que ali há pouca teoria econômica, embora haja razoável complexidade econométrica incorporada. É um modelo que tem como vantagens a facilidade de implementação, a transparência e a "objetividade" estatística. Como desvantagens, a rigidez e o automatismo nas respostas a sinais de preços e nível de atividade e, especialmente, o mecanismo de ajuste através das taxas de juros.
Evidentemente, a aplicação de um protocolo padrão por médicos lhes dá o conforto da defesa fácil, caso os pacientes ou familiares aleguem erro de conduta médica. Não se pode esquecer, porém, que as moléstias tropicais são incomuns na experiência dos centros médicos de onde saem esses guias de melhores práticas. O uso das "leeches" e de elevações nas taxas de juros acima da linha do Equador ainda existe, mas é extremamente seletivo e parcimonioso.
Para a realidade e as necessidades brasileiras, o apego incondicional a metas inflacionárias estreitas e a cegueira aos sinais econômicos não capturados pelos modelos econométricos expõem graves erros de política econômica.
Os principais males que acometem o Brasil hoje não são monetários, mas microeconômicos e institucionais. É urgente, dada a gravidade do caso, que o diagnóstico seja refeito e o tratamento atual descontinuado. Os juros no país são altos por uso de um protocolo de metas de inflação mal adaptado.
Não se leia aqui um argumento xenófobo ou avesso às boas técnicas em economia. Ao revés, é nos casos mais graves que se fazem conhecer os bons médicos e economistas, aqueles que dominam o protocolo e seus limites, mas não os utilizam como escudo de proteção. O Brasil está anêmico, chega das sanguessugas!


Roland Veras Saldanha Jr., mestre em economia de empresas pela FGV-SP, é professor do Departamento de Economia da PUC-SP e consultor em direito e economia.


Texto Anterior: TENDÊNCIAS/DEBATES
É preciso flexibilizar a meta de inflação?

Não - José Márcio Camargo e Roberto Padovani: Meta é compatível com crescimento

Próximo Texto:
Painel do leitor

Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.