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TENDÊNCIAS/DEBATES
É preciso flexibilizar a meta de inflação?
SIM
Chega das sanguessugas!
ROLAND VERAS
Recordo-me, saudoso, da ácida e
exata comparação histórica tantas
vezes feita pelo prof. Ruben Dario Almonacid: "Lamentavelmente, no Brasil
ainda se usam as taxas de juros como se
fazia com as sanguessugas no passado
-entendia-se que elas curavam qualquer doença, especialmente quando
não se tinha um bom diagnóstico".
Por mais de dois milênios, o uso das
sanguessugas foi recorrente na prática
médica, tendo sido empregadas amplamente para os mais diversos problemas
de saúde, do combate a dores de cabeça
ao tratamento do câncer. Ainda recentemente, nos séculos 18 e 19, o uso "médico" das sanguessugas atingiu seu ápice. Conta-se que era tamanha a crença
no poder das sangrias para a solução de
quadros clínicos, que houve anos em
que mais de 30 milhões de "leeches"
(nome inglês desses parasitas) teriam
sido embarcadas da Alemanha em direção aos EUA, com finalidades curativas.
Já há mais de um século, entretanto,
os avanços na ciência médica mostraram que por trás da maioria das doenças humanas não está o excesso de sangue. Tampouco se entende hoje que a
hemorragia possa ser revigorante para
os enfermos.
O Brasil é ainda jovem, mas está gravemente doente. As dores são agudas,
com mais de 20% de desemprego em algumas metrópoles e notável ociosidade
industrial. Recém-saído de um tratamento antiinflacionário, o país tenta se
recuperar de uma terapia cambial bastante agressiva e prolongada, em que o
uso das sanguessugas das taxas de juros
foi constante para a atração de financiamento externo.
O remédio cambial foi abandonado,
mudou a equipe médica, mas o quadro
de debilidade e as técnicas medievais
permaneceram. Assumindo o "caso"
com promessas de recuperação espetacular, talvez milagrosas demais para excluir as suspeitas de curandeirismo,
usaram juros altos, agora, para tranqüilizar o paciente. A tranqüilidade teve
custo alto, com queda do poder de compra dos brasileiros, manutenção de altas
taxas de desemprego e medíocres níveis
de investimento. Houve, reconhece-se,
evolução positiva em duas áreas: controle orçamentário e saldos comerciais.
Os principais focos infecciosos dos corpos nacionais modernos, déficits público e externo, aparentemente estão controlados. Com esse novo quadro, que
justificativas técnicas existiriam para a
manutenção de juros tão altos?
Efetivamente, a revolução ocorrida na
medicina moderna não encontra analogia na política macroeconômica. Se os
médicos alteraram o tratamento assim
que entenderam melhor as causas das
doenças, entre os economistas o uso das
sanguessugas ainda parece uma boa
prática.
Tem-se observado no país, em parte
pela voracidade tributária do governo,
em parte pelo simples realinhamento de
preços relativos, um receio infundado
do ressurgimento de um processo inflacionário. Orientados por rígidos protocolos elaborados nos centros de economia estrangeiros, nossos doutores insistem na necessidade do tratamento com
sanguessugas. Quem já teve contato
com a metodologia de definição e implementação do sistema de metas inflacionários sabe que ali há pouca teoria
econômica, embora haja razoável complexidade econométrica incorporada. É
um modelo que tem como vantagens a
facilidade de implementação, a transparência e a "objetividade" estatística. Como desvantagens, a rigidez e o automatismo nas respostas a sinais de preços e
nível de atividade e, especialmente, o
mecanismo de ajuste através das taxas
de juros.
Evidentemente, a aplicação de um
protocolo padrão por médicos lhes dá o
conforto da defesa fácil, caso os pacientes ou familiares aleguem erro de conduta médica. Não se pode esquecer, porém, que as moléstias tropicais são incomuns na experiência dos centros médicos de onde saem esses guias de melhores práticas. O uso das "leeches" e de
elevações nas taxas de juros acima da linha do Equador ainda existe, mas é extremamente seletivo e parcimonioso.
Para a realidade e as necessidades brasileiras, o apego incondicional a metas
inflacionárias estreitas e a cegueira aos
sinais econômicos não capturados pelos modelos econométricos expõem
graves erros de política econômica.
Os principais males que acometem o
Brasil hoje não são monetários, mas microeconômicos e institucionais. É urgente, dada a gravidade do caso, que o
diagnóstico seja refeito e o tratamento
atual descontinuado. Os juros no país
são altos por uso de um protocolo de
metas de inflação mal adaptado.
Não se leia aqui um argumento xenófobo ou avesso às boas técnicas em economia. Ao revés, é nos casos mais graves que se fazem conhecer os bons médicos e economistas, aqueles que dominam o protocolo e seus limites, mas não
os utilizam como escudo de proteção. O
Brasil está anêmico, chega das sanguessugas!
Roland Veras Saldanha Jr., mestre em economia de empresas pela FGV-SP, é professor do Departamento de Economia da PUC-SP e consultor
em direito e economia.
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