São Paulo, segunda-feira, 13 de março de 2006

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

TENDÊNCIAS/DEBATES

A soberania do Tribunal do Júri

LUIZA NAGIB ELUF

A Justiça brasileira adotou duas formas de julgar os processos criminais em primeira instância. Uma é a avaliação do caso por um juiz de carreira, formado em direito e concursado. Outra é o julgamento pelo Tribunal do Júri, que é composto de pessoas leigas da comunidade, escolhidas mediante sorteio.


Os TJs, que podem mudar as decisões proferidas pelos juízes de primeira instância, não podem alterar o veredicto do júri


Em nosso sistema, o Tribunal do Júri é exceção à regra do juiz togado. O colegiado de juízes leigos só exerce sua competência julgadora em casos de crimes dolosos contra a vida, que são o homicídio, o infanticídio, o aborto e a participação em suicídio. Entende-se que esses crimes são extremamente graves e, por vezes, resultantes de situações peculiares, que merecem um tratamento especial, ou seja, que os acusados sejam julgados por membros da comunidade.
Em outros países, como nos Estados Unidos, o júri decide quase todas as ações judiciais, tanto criminais quanto cíveis. No Brasil, a instituição do júri popular tem adeptos e opositores. Há quem pregue a sua extinção e há quem defenda sua permanência ou mesmo ampliação. De toda forma, enquanto não sobrevém nenhuma alteração legal, devemos cumprir os mandamentos de nossa Constituição Federal. O júri segue sendo uma instituição democrática que decide com total soberania -ou, pelo menos, assim deveria ser.
O berço da instituição, em seu formato atual, foi a Inglaterra, em 1215, mas a nomeação de jurados já era utilizada no direito processual romano. Com a Revolução Francesa, o júri se espalhou pela Europa, se transformando em símbolo da reação ao absolutismo monárquico. Na época, era uma forma de exercício do poder popular com nuanças místicas e religiosas -que ainda persistem no júri inglês e americano de hoje, em que são feitos juramentos sobre a bíblia e expressas invocações de Deus.
No Brasil, o júri popular teve sua primeira instalação em junho de 1822, quando d. Pedro 1º, ainda príncipe regente, criou os "juízes de fato", com competência para julgar apenas os crimes de imprensa. Posteriormente, promulgada a Constituição do Império, em 1824, o Tribunal do Júri adquiriu nova dimensão, ganhando atribuição para todas as infrações penais e também para ações civis.
Com o passar do tempo, porém, várias infrações foram sendo subtraídas da competência do júri, mas, até agora, sob a Constituição de 1988, permanece o júri com sua soberania inalterada, como garantia fundamental (art. 5º, inciso XXXVIII, da Constituição Federal).
Isso significa que os Tribunais de Justiça, que têm a possibilidade de modificar as decisões proferidas pelos juízes togados de primeira instância, não podem alterar o veredicto do júri.
Nossa lei prevê algumas hipóteses de recurso de decisão dos juízes leigos, mas apenas em situações bastante limitadas, previstas no artigo 593 do Código de Processo Penal, que são: ocorrência de nulidade; sentença contrária à lei ou à decisão dos jurados; erro ou injustiça no tocante à aplicação da pena; ou se a decisão dos jurados for manifestamente contrária à prova dos autos.
No entanto, com relação ao mérito, a decisão dos jurados não pode ser modificada. Mesmo que seja reconhecido um equívoco ou uma arbitrariedade no julgamento do júri e o Tribunal de Justiça venha a anular a decisão, outro júri terá de ser convocado para julgar novamente o caso. O Tribunal de Justiça não pode simplesmente absolver quem foi condenado ou condenar quem foi absolvido pelo júri, exatamente em decorrência da soberania dos juízes leigos, que representam a sociedade e o poder do povo.
Caso entenda que houve contradição dos jurados nas respostas aos quesitos -o que tornaria a decisão confusa e dúbia-, o Tribunal de Justiça pode anular o julgamento e determinar a realização de novo júri, mas é absolutamente incomum que se anule apenas parcialmente o veredicto, fazendo prevalecer a resposta a determinado quesito e considerando sem efeito as respostas aos demais.
No entanto, foi isso o que aconteceu recentemente com relação a uma decisão do júri sobre a morte de 111 detentos durante uma invasão policial ao presídio do Carandiru. O Tribunal de Justiça de São Paulo tomou uma decisão polêmica ao anular parte do veredicto e fazer subsistir outra parte, invertendo a sentença proferida pelo júri de forma a absolver quem havia sido condenado.
Sem entrar no mérito da decisão, e independentemente do acerto ou erro da absolvição, o fato é que o princípio da soberania do júri popular não admite esse tipo de interpretação. Decisão contraditória ou confusa é nula na sua integridade, não parcialmente, e somente outro Tribunal do Júri pode dar a palavra final sobre a culpabilidade ou não do acusado.
A decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo subtraiu ao Tribunal do Júri sua competência exclusiva e indeclinável de proferir sentença a respeito da inocência ou culpabilidade de um acusado de vários homicídios.
A prevalecer esse entendimento, será melhor eliminar de vez a instituição do júri popular, medida que representaria verdadeiro retrocesso para os direitos da cidadania.

Luiza Nagib Eluf, 50, é procuradora de Justiça do Ministério Público do Estado de São Paulo. Foi secretária nacional dos Direitos da Cidadania do Ministério da Justiça (governo Fernando Henrique Cardoso). É autora de "A Paixão no Banco dos Réus", entre outros livros.


Texto Anterior: TENDÊNCIAS/DEBATES
Marcelo Itagiba: Ministério da Segurança Pública

Próximo Texto: Painel do leitor
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.