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São Paulo, domingo, 13 de abril de 2003

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Utopia, realismo e governo

TARSO GENRO


Não há nenhum exemplo histórico de políticas transformadoras que não tenham combinado realismo e utopismo

A oposição mecânica que frequentemente é feita entre realismo e utopismo para desqualificar a utopia como fundamento da política emancipatória, ou o uso da mesma oposição, por alguns, para qualificar como cínico o "realismo político", tem a ver com as nossas polêmicas de governo. Utopismo e realismo compõem, ambos, tanto as políticas "radicais" como as de cunho "democrático-reformistas".
Entre o pensamento que fundamenta um projeto e o fim desejado, mais ou menos distante/mais ou menos realizável, há sempre um conjunto de técnicas. A utopia pura não pensa sobre elas. Os discursos, as relações humanas que querem transformar a vontade em relação social concreta buscam meios para promover um determinado resultado. Os meios -é óbvio- não determinam, a priori, quais os fins ou o fim que será alcançado. O "fim" almejado pela "mediação" -que é a "pura" política- depende sempre das sínteses que vão resultar do "encontro" da ação mediadora de um sujeito com a ação mediadora do outro.
Grande parte da esquerda sempre resolveu o dilema do conflito político, ou mesmo entre o utopismo (generoso) e o realismo (racionalista), por um método que teve aceitação no auge dos processos de Moscou: através da formulação teórica da categoria do "inimigo objetivo". Construiu-se, assim, um instrumento puro de barbárie repressora, considerando que mesmo o "inimigo" poderia "não saber" que estava sendo inimigo, pois tudo dependia do seu comportamento "objetivo".
A fórmula é falsa e autoritária. O "inimigo" é aquele sujeito dotado de um ânimo "não-amigo", ou seja, cuja ação é originária de decisão. Uma decisão que é subjetivamente escolhida, responsável pela vontade de ser inimigo. Um inimigo só o é, portanto, com vontade, pois ser inimigo supõe a vontade da inimizade. Às vezes parece que a chamada esquerda vê assim o governo Lula, como um inimigo objetivo.
A solução encontrada pelo stalinismo, através da fórmula do inimigo objetivo, resolvia dois problemas: em primeiro lugar, jogava para o outro lado da cerca todos os que agiam -segundo o poder- contra as políticas oficiais do Estado, que eram as de Stálin, e assim criminalizava-os; em segundo lugar, interditava o debate proposto pelos que queriam outros caminhos políticos para a Revolução e legitimava a ação punitiva do Estado.
Sem deixar de aplicar, é óbvio, as regras de direito interno que regulam democraticamente a vida política da comunidade partidária, não podemos ter nenhum comportamento de interdição do debate. O fundamental, aliás, é que ele vá até as raízes teóricas mais fundas, obrigando que cada interlocutor exponha a ótica verdadeira pela qual critica o governo Lula: pelo seu "realismo"? Pelo seu "reformismo"? Pela sua recusa da "ruptura", que fará os mais pobres pagarem, ainda mais, a conta, como na Argentina? Por que o governo Lula está "objetivamente" traindo? Por que "não interessam" as consequências de uma ruptura?
Nós sustentamos que o governo reformista de Lula está, sim, agindo com realismo, pois qualquer política pode e deve combinar realismo com ousadia, nos seus momentos próprios. Não há nenhum exemplo histórico de políticas transformadoras que não tenham combinado realismo e utopismo. Lênin, Roosevelt, Mao, Deng, Vargas, Lázaro Cárdenas, Kennedy -todos foram realistas e utópicos ao mesmo tempo. E o foram na realização das suas políticas, em parte progressistas, em parte conservadoras, afora cumprir determinados objetivos históricos.
Nem são cínicos os que privilegiam o realismo para governar e criar as condições para o avanço, nem são "utopistas" -no sentido pejorativo da palavra-os que pedem ousadia. Só a política, porém, como mais alta concreção da racionalidade social, é que pode equilibrar e unir os sujeitos que são verdadeiramente identificados com um determinado projeto.
Mas, para que isso ocorra, o ponto de partida é a afirmação clara de uma identidade. Nós declararmos apoio ao reformismo, considerando-o uma evolução, não uma "tática" para a ruptura. Nós, que estamos no governo, entendemos que a saída para uma "utopia possível" é a reforma, feita com uma amplitude social e uma abertura política sincera, não meramente tática. O objetivo é colocar o país num outro patamar civilizatório democrático, com altas taxas de crescimento e fortes políticas de caráter distributivo. O nosso entendimento é que, sem esses passos, todo o resto é utopia sem possibilidade de vigência.


Tarso Genro, 56, advogado, é ministro da Secretaria Especial do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social da Presidência da República. Foi prefeito de Porto Alegre (1993-96 e 2001-02) e deputado federal (1989-90).


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