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São Paulo, terça-feira, 13 de maio de 2003

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ROBERTO MANGABEIRA UNGER

O precipício

Três conjuntos de fatos, sem conexão aparente, demarcam o abismo em que o governo Lula ameaça cair. E impõem aos inconformados uma grande tarefa.
O primeiro grupo de fatos é o descompasso entre a impressão do estado em que se encontra a economia brasileiro e o estado em que ela de fato está. A impressão é de êxito no afastamento de crise de confiança, aplausos mundiais à solidez da política econômica, reversão do déficit das contas externas e consequente prontidão do país para iniciar novo ciclo de crescimento. A realidade é de rendição a um ideário que jamais assegurou crescimento em nenhum país grande na história contemporânea. As políticas monetária e fiscal continuam a conspirar contra o crescimento. Com a valorização do real, o equilíbrio das contas externas depende cada vez mais da estagnação interna. Não há o menor sinal de medidas que troquem as ilusões do fiscalismo e do mercantilismo pela mobilização da poupança de longo prazo para o investimento de longo prazo, pela valorização sustentável dos salários, pela democratização do acesso aos instrumentos do trabalho e da produção e pela multiplicação de exemplos de excelência no ensino público. Agradando aos mercados e ajudando a calar os trabalhadores, o suposto progressista no poder consegue ser aceito pelos que mandam no mundo. Nunca, porém, esse estratagema de confusão e de medo traz desenvolvimento ou justiça. Sempre acaba mal.
A segunda série de fatos é o esvaziamento das instituições e das práticas republicanas em proveito da hegemonia política. Já frágeis, os partidos da "base aliada" foram humilhados e reduzidos a linhas auxiliares, com filiações e desfiliações estimuladas pelo Palácio. A mídia, em grande parte quebrada, vem sendo aliciada por um governo que parece determinado a tirar o máximo proveito da dependência econômica dela; basta ligar a televisão para ver. Os "lobbies" e as corporações são contemplados ou punidos de acordo com o mesmo cálculo de intimidação e de cooptação. E tudo isso encontra pretexto na pretensa necessidade de reconciliar com os interesses endinheirados o poder político dos ex-militantes de esquerda.
A terceira soma de fatos é a mais obscura e a mais perturbadora. Nada indica que o primeiro escalão do governo se aproveite pessoalmente da relação com a plutocracia. Mas e se a obsessão com a hegemonia enfraquecer o respeito pelos limites morais e legais? Se grandes empresários forem convocados ao Palácio para que se lhes peçam contribuições destinadas a saldar dívidas de campanha do PT e de partidos aliados? Se se abrirem as portas para negócios do interesse de contribuintes à campanha passada? A víbora envenenaria o governo antes mesmo de amadurecerem os frutos amargos da política econômica de rendição. Tudo isso se evitaria com o financiamento público das campanhas eleitorais. Carente desse remédio, a República precisa de cidadãos que a socorram, armados da primeira virtude cívica, que é a coragem.
O país, paciente, continua, em sua maioria decisiva, a apoiar o governo Lula. Todos nós que nos decidimos a resistir não devemos confundir nossa causa com qualquer sectarismo de esquerda. Não sabemos hoje por onde começar ou com que instrumentos. Não podemos prever se, ao final, seremos acompanhados por 50 brasileiros ou por 50 milhões. Tanto maior, imerecidamente maior, a sorte daqueles que iniciarem a luta agora.


Roberto Mangabeira Unger escreve às terças-feiras nesta coluna.
www.law.harvard.edu/unger


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