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TENDÊNCIAS/DEBATES
O gasobesteirol boliviano
ROGÉRIO CEZAR DE CERQUEIRA LEITE
"A viabilidade econômica do
"Gasbol" passou a ser debatida
de maneira mais ampla a partir 1993.
Um dos marcos foi o artigo na Folha
(4/2/93), o jornal de maior tiragem e
maior influência no país, intitulado "O
bestialógico energético brasileiro"."
Assim se exprime a ONG das ONGs,
Coalizão Rios Vivos, em relatório recente encontrável na internet. O argumento
daquele modesto artigo era baseado no
"Survey of Energy Resources", editado
pelo Conselho Mundial de Energia em
1992, que atribuía à Bolívia um total de
reservas comprovadas e prováveis de
apenas 118 bilhões de m3, o que seria insuficiente para amortizar os investimentos, estimados otimistamente em
US$ 2,145 bilhões. A capacidade do gasoduto e o consumo final esperados
eram então de 30 milhões de m3/dia.
Basta saber dividir para deduzir que
após dez anos, dez meses e duas semanas as prodigiosas reservas bolivianas
de gás natural estariam esgotadas.
O Banco Mundial, por meio de um
seu consultor, e o JP Morgan, ao analisarem independentemente a questão,
chegaram à conclusão de que a insuficiência de reservas tornava o projeto "financeiramente arriscado". Em 1996,
uma auditoria independente citada pelo
Banco Interamericano de Desenvolvimento atribuiu à Bolívia 93,6 bilhões de
m3 de reservas provadas (medidas), 36,9
bilhões de m3 de reservas prováveis (inferidas) e 51 milhões de m3 de reservas
possíveis (adivinhadas). O Conselho
Mundial de Energia jamais agregou esses novos dados -mesmo que fossem
verdadeiros, o período de vida útil do
Gasbol seria de no máximo 15 anos.
Não é pois de espantar que a grande
maioria das empresas nacionais e estrangeiras tivesse rejeitado compromissos que levassem à conversão de sistemas com combustíveis derivados do petróleo para o gás natural.
Com tudo isso contra, como se explica
que a Petrobras, que inicialmente se
opôs obstinadamente, tenha, súbita e
inesperadamente, mudado a sua posição? E isso a despeito da convicção técnica, tantas vezes expressa publicamente, de que o gás da Bolívia era economicamente inaproveitável. Estamos, pois,
ante um desses mistérios que ocorrem
tão frequentemente durante a administração FHC. Invoquemos, pois, os espíritos de Sherlock Holmes, Poirot e Maigret. A primeira pista nos é dada por um
dos argumentos oficiais dos lobistas do
gasobesteirol: "Tudo bem, o gás da Bolívia acaba, vá lá que seja. Nessa ocorrência, estenderemos o gasoduto até o Peru". Aí começamos a entender o enigma. As reservas da Bolívia pertencem à
Enron; as do Peru, à Shell.
A Bolívia assinou um
tratado de fornecimento
de gás por 20 anos, tendo
capacidade de fornecer
por apenas dez anos
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Enron e Shell são bem conhecidas por
seus poderes de persuasão. Então aquelas reservas dos dois países, conhecidas
há décadas, enfim encontrariam um
piedoso comprador. O caldo de cultura
que permitiu esse escandaloso acontecimento foi cuidadosamente cultivado.
Renó, FHC, Enron, Shell e uma infinidade de lobistas pululando por todos os
corredores de Brasília, eis o cenário.
Não menos envolvidos estavam as
empreiteiras e os fornecedores de materiais e equipamentos. Assim a Bolívia
assinava com o Brasil um tratado de fornecimento de gás por 20 anos, mesmo
tendo capacidade de fornecer por apenas dez. E o governo brasileiro, sabendo
dessa insuficiência, concordava.
Mas não é tudo. O pior ainda estava
para acontecer. O atual projeto de adoção maciça de termelétricas a gás que
salvaria o gasobesteirol boliviano
-deixado às "cucarachas" pois as empresas brasileiras não se arriscavam a
adotar o gás boliviano- propõe que a
presente crise nacional de eletricidade
seja corrigida por usinas alimentadas
com o gás da Bolívia. Uma insuficiência
serviria para cobrir uma deficiência.
Para recompor o sistema elétrico brasileiro até níveis tecnicamente satisfatórios seria necessária uma disponibilidade adicional de, digamos, 150 milhões
de mW/h por ano. Ou seja, as reservas
da Bolívia se esgotariam em oito anos. E
as termelétricas a gás virariam sucata.
Em compensação a Shell e a Enron
iriam morrer de felicidade. Assim como
tantos lobistas, a direção da Petrobras,
tantos intermediários e empreiteiras e
fornecedores... E o próximo apagão
ocorreria em uma outra administração.
Os parlamentares servis ao imperador
costumam retrucar críticas da oposição
e da opinião pública com a acusação de
que estas não apresentam alternativas.
Pois bem, eu aceito o desafio. O gás natural tem composição não muito diferente da que se obtém a partir da fermentação anaeróbica de matéria orgânica -basicamente o metano. O gasoduto Bolívia-Brasil pode ser, portanto,
utilizado sem nenhuma adaptação para
transportar metano de origem fermentativa. Pois bem, em homenagem ao governo Figueiredo, proponho que a administração FHC adote o clássico projeto César Cals e construa um galinheiro
de dimensões continentais na Bolívia.
Essa iniciativa deixaria, de quebra, o
patrão americano extremamente feliz,
pois a titica inundaria os campos de
produção de coca, arrasando com o tráfico de drogas e também com as guerrilhas da Bolívia e do Peru.
Rogério Cezar de Cerqueira Leite, 69, físico, é
professor emérito da Unicamp e membro do
Conselho Editorial da Folha.
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