São Paulo, quarta-feira, 13 de junho de 2001

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TENDÊNCIAS/DEBATES

O gasobesteirol boliviano

ROGÉRIO CEZAR DE CERQUEIRA LEITE

"A viabilidade econômica do "Gasbol" passou a ser debatida de maneira mais ampla a partir 1993. Um dos marcos foi o artigo na Folha (4/2/93), o jornal de maior tiragem e maior influência no país, intitulado "O bestialógico energético brasileiro"."
Assim se exprime a ONG das ONGs, Coalizão Rios Vivos, em relatório recente encontrável na internet. O argumento daquele modesto artigo era baseado no "Survey of Energy Resources", editado pelo Conselho Mundial de Energia em 1992, que atribuía à Bolívia um total de reservas comprovadas e prováveis de apenas 118 bilhões de m3, o que seria insuficiente para amortizar os investimentos, estimados otimistamente em US$ 2,145 bilhões. A capacidade do gasoduto e o consumo final esperados eram então de 30 milhões de m3/dia. Basta saber dividir para deduzir que após dez anos, dez meses e duas semanas as prodigiosas reservas bolivianas de gás natural estariam esgotadas.
O Banco Mundial, por meio de um seu consultor, e o JP Morgan, ao analisarem independentemente a questão, chegaram à conclusão de que a insuficiência de reservas tornava o projeto "financeiramente arriscado". Em 1996, uma auditoria independente citada pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento atribuiu à Bolívia 93,6 bilhões de m3 de reservas provadas (medidas), 36,9 bilhões de m3 de reservas prováveis (inferidas) e 51 milhões de m3 de reservas possíveis (adivinhadas). O Conselho Mundial de Energia jamais agregou esses novos dados -mesmo que fossem verdadeiros, o período de vida útil do Gasbol seria de no máximo 15 anos.
Não é pois de espantar que a grande maioria das empresas nacionais e estrangeiras tivesse rejeitado compromissos que levassem à conversão de sistemas com combustíveis derivados do petróleo para o gás natural.
Com tudo isso contra, como se explica que a Petrobras, que inicialmente se opôs obstinadamente, tenha, súbita e inesperadamente, mudado a sua posição? E isso a despeito da convicção técnica, tantas vezes expressa publicamente, de que o gás da Bolívia era economicamente inaproveitável. Estamos, pois, ante um desses mistérios que ocorrem tão frequentemente durante a administração FHC. Invoquemos, pois, os espíritos de Sherlock Holmes, Poirot e Maigret. A primeira pista nos é dada por um dos argumentos oficiais dos lobistas do gasobesteirol: "Tudo bem, o gás da Bolívia acaba, vá lá que seja. Nessa ocorrência, estenderemos o gasoduto até o Peru". Aí começamos a entender o enigma. As reservas da Bolívia pertencem à Enron; as do Peru, à Shell.


A Bolívia assinou um tratado de fornecimento de gás por 20 anos, tendo capacidade de fornecer por apenas dez anos
Enron e Shell são bem conhecidas por seus poderes de persuasão. Então aquelas reservas dos dois países, conhecidas há décadas, enfim encontrariam um piedoso comprador. O caldo de cultura que permitiu esse escandaloso acontecimento foi cuidadosamente cultivado. Renó, FHC, Enron, Shell e uma infinidade de lobistas pululando por todos os corredores de Brasília, eis o cenário.
Não menos envolvidos estavam as empreiteiras e os fornecedores de materiais e equipamentos. Assim a Bolívia assinava com o Brasil um tratado de fornecimento de gás por 20 anos, mesmo tendo capacidade de fornecer por apenas dez. E o governo brasileiro, sabendo dessa insuficiência, concordava.
Mas não é tudo. O pior ainda estava para acontecer. O atual projeto de adoção maciça de termelétricas a gás que salvaria o gasobesteirol boliviano -deixado às "cucarachas" pois as empresas brasileiras não se arriscavam a adotar o gás boliviano- propõe que a presente crise nacional de eletricidade seja corrigida por usinas alimentadas com o gás da Bolívia. Uma insuficiência serviria para cobrir uma deficiência.
Para recompor o sistema elétrico brasileiro até níveis tecnicamente satisfatórios seria necessária uma disponibilidade adicional de, digamos, 150 milhões de mW/h por ano. Ou seja, as reservas da Bolívia se esgotariam em oito anos. E as termelétricas a gás virariam sucata. Em compensação a Shell e a Enron iriam morrer de felicidade. Assim como tantos lobistas, a direção da Petrobras, tantos intermediários e empreiteiras e fornecedores... E o próximo apagão ocorreria em uma outra administração.
Os parlamentares servis ao imperador costumam retrucar críticas da oposição e da opinião pública com a acusação de que estas não apresentam alternativas. Pois bem, eu aceito o desafio. O gás natural tem composição não muito diferente da que se obtém a partir da fermentação anaeróbica de matéria orgânica -basicamente o metano. O gasoduto Bolívia-Brasil pode ser, portanto, utilizado sem nenhuma adaptação para transportar metano de origem fermentativa. Pois bem, em homenagem ao governo Figueiredo, proponho que a administração FHC adote o clássico projeto César Cals e construa um galinheiro de dimensões continentais na Bolívia.
Essa iniciativa deixaria, de quebra, o patrão americano extremamente feliz, pois a titica inundaria os campos de produção de coca, arrasando com o tráfico de drogas e também com as guerrilhas da Bolívia e do Peru.


Rogério Cezar de Cerqueira Leite, 69, físico, é professor emérito da Unicamp e membro do Conselho Editorial da Folha.



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