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Faniquitos da incompetência
PAULO SÉRGIO PINHEIRO
Em vez de chiar por causa das críticas do relator da ONU, seria mais útil verificar o que foi ou não feito depois da visita da sua antecessora
"O QUE tem esse australiano
de vir aqui para nos criticar e dizer o que devemos
fazer?" Esse foi o faniquito de uma
autoridade carioca diante do relatório
sobre execuções extrajudiciais, sumárias ou arbitrárias apresentado pelo relator especial Philip Alston há
poucos dias ao Conselho de Direitos
Humanos da ONU. A pergunta revela
suprema ignorância sobre o que fazem os relatores especiais para direitos humanos.
Até 1970, os órgãos de direitos humanos da ONU não monitoravam a
situação de direitos humanos. Depois
do grupo de trabalho sobre o apartheid na África do Sul, foi nomeado o
primeiro relator especial para examinar a situação no Chile sob a ditadura
de Pinochet, em 1979. Em seguida, foram criados vários mandatos sobre
países, como Birmânia/Mianmar
(que esteve a meu cargo de 2000 a
2008), e temáticos, como sobre tortura, liberdade de expressão e racismo,
totalizando cerca de 40 mandatos.
O que fazem, afinal, esses relatores
e por que eles são especiais? Como o
próprio nome diz, os relatores relatam: apresentam relatórios os órgãos
competentes. São especiais porque,
em missão, têm alguns privilégios de
proteção internacional.
Os relatores mantêm contato com
missões diplomáticas, sociedade civil,
centros de pesquisas e parlamentares. O orçamento disponível, bastante
limitado, permite que façam de uma a
três visitas por ano.
Um detalhe que provavelmente
meu indignado conterrâneo carioca
não conhece é que, apesar de desenvolverem missões em nome da ONU,
os relatores não são funcionários da
ONU. No Burundi, um ministro afirmou que "o sr. Pinheiro pode continuar a receber seu alto salário da
ONU, mas, aqui no meu país, não pisa
mais". Errou, pois os relatores trabalham de graça: não recebem honorários, só diárias em missão e transporte -a única concessão é viajar em
classe executiva. Ah, e eu voltei.
O relator especial tem um mandato
bastante contraditório, porque deve
tornar público o que viu e ouviu, o que
tende a gerar desconforto, mas, por
outro lado, espera-se que colabore e
dialogue com o governo, propondo
recomendações e até cooperação com
órgãos da ONU. Evidentemente, se
não vier a público por meio da imprensa, sua efetividade será bastante
limitada, restringindo-se ao debate
dentro do Conselho de Direitos Humanos ou na Assembléia Geral.
É claro que há sempre os pessimistas repetindo o clássico chavão "ninguém lê os relatórios da ONU". Ledo
engano: vítimas de violações de direitos humanos, entidades da sociedade
civil e até os governos julgam do
maior interesse os relatórios.
Lembro-me de um colega, então relator especial sobre tortura, surpreso
com a cordialidade com que foi recebido pelo nosso governo federal. De
fato, os relatores especiais, tanto no
governo FHC quanto no governo Lula, têm sido recebidos (inclusive pelos
presidentes) com a maior atenção,
obtendo total colaboração e apoio do
Itamaraty e da Secretaria Especial
dos Direitos Humanos (SEDH).
Isso porque, desde o retorno à democracia, está inscrito na política de
Estado de direitos humanos que a soberania nacional não pode servir de
escudo contra denúncias de violações
de direitos humanos, pois denúncias
não se negam, apuram-se.
Se foi tal o bafafá diante das seis páginas do relatório preliminar de Alston, imagine o que bambambã carioca
irá dizer ao ler o relatório completo,
que deverá ter umas 35 páginas, a dimensão padrão. Em vez de chiar, mais
útil para os Estados brasileiros seria
verificar o que foi ou não feito depois
da visita da antecessora de Philip Alston, Asma Jahandir, em 2004.
Ao reler as recomendações propostas por ela, vemos que poucas foram
implementadas pelos Estados, especialmente no que diz respeito ao uso
excessivo da força pelas Polícias militares, que continuam, em várias capitais, matando em execuções sumárias
disfarçadas de confrontos e sendo
mortas pela criminalidade no chamado bico e outros empregos ilegais.
No relatório de Asma, há um discurso em sintonia com o que a SEDH,
o ministro Paulo Vannuchi, centros
de pesquisa, o Núcleo de Estudos da
Violência da USP, a Comissão Teotônio Vilela, o Ministério Publico FEderal e o estadual e a sociedade civil vêm
propondo há, pelo menos, 20 anos.
E, por fim, em sintonia com o que
Alston propõe na sua atual prévia de
relatório: aumento dos salários dos
policiais, investigação independente
das mortes pela polícia, melhoria dos
institutos de medicina legal, mais poderes aos ombudsmen, monitoramento das condições dos presídios.
É um texto equilibrado, que incorpora pontos de vista dos policiais sobre as "guerras" contra o crime e reconhece o muito que foi realizado.
O relatório ressalta, para nosso encabulamento, no final: "O povo brasileiro não lutou contra 20 anos de ditadura ou adotou uma Constituição dedicada ao respeito dos direitos humanos, restaurando a liberdade no Brasil, para que policiais matem impunemente em nome da segurança". Lembrete que governo e sociedade deveriam recitar como um mantra para
pôr fim à matança rotineira e inútil
para a segurança do povo.
PAULO SÉRGIO PINHEIRO, 64, membro da Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA (Organização
dos Estados Americanos), foi relator especial da ONU para Burundi e Mianmar. Foi secretário de Estado de Direitos Humanos no governo FHC.
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