São Paulo, sexta-feira, 13 de junho de 2008

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Faniquitos da incompetência

PAULO SÉRGIO PINHEIRO

Em vez de chiar por causa das críticas do relator da ONU, seria mais útil verificar o que foi ou não feito depois da visita da sua antecessora

"O QUE tem esse australiano de vir aqui para nos criticar e dizer o que devemos fazer?" Esse foi o faniquito de uma autoridade carioca diante do relatório sobre execuções extrajudiciais, sumárias ou arbitrárias apresentado pelo relator especial Philip Alston há poucos dias ao Conselho de Direitos Humanos da ONU. A pergunta revela suprema ignorância sobre o que fazem os relatores especiais para direitos humanos.
Até 1970, os órgãos de direitos humanos da ONU não monitoravam a situação de direitos humanos. Depois do grupo de trabalho sobre o apartheid na África do Sul, foi nomeado o primeiro relator especial para examinar a situação no Chile sob a ditadura de Pinochet, em 1979. Em seguida, foram criados vários mandatos sobre países, como Birmânia/Mianmar (que esteve a meu cargo de 2000 a 2008), e temáticos, como sobre tortura, liberdade de expressão e racismo, totalizando cerca de 40 mandatos.
O que fazem, afinal, esses relatores e por que eles são especiais? Como o próprio nome diz, os relatores relatam: apresentam relatórios os órgãos competentes. São especiais porque, em missão, têm alguns privilégios de proteção internacional.
Os relatores mantêm contato com missões diplomáticas, sociedade civil, centros de pesquisas e parlamentares. O orçamento disponível, bastante limitado, permite que façam de uma a três visitas por ano.
Um detalhe que provavelmente meu indignado conterrâneo carioca não conhece é que, apesar de desenvolverem missões em nome da ONU, os relatores não são funcionários da ONU. No Burundi, um ministro afirmou que "o sr. Pinheiro pode continuar a receber seu alto salário da ONU, mas, aqui no meu país, não pisa mais". Errou, pois os relatores trabalham de graça: não recebem honorários, só diárias em missão e transporte -a única concessão é viajar em classe executiva. Ah, e eu voltei.
O relator especial tem um mandato bastante contraditório, porque deve tornar público o que viu e ouviu, o que tende a gerar desconforto, mas, por outro lado, espera-se que colabore e dialogue com o governo, propondo recomendações e até cooperação com órgãos da ONU. Evidentemente, se não vier a público por meio da imprensa, sua efetividade será bastante limitada, restringindo-se ao debate dentro do Conselho de Direitos Humanos ou na Assembléia Geral.
É claro que há sempre os pessimistas repetindo o clássico chavão "ninguém lê os relatórios da ONU". Ledo engano: vítimas de violações de direitos humanos, entidades da sociedade civil e até os governos julgam do maior interesse os relatórios.
Lembro-me de um colega, então relator especial sobre tortura, surpreso com a cordialidade com que foi recebido pelo nosso governo federal. De fato, os relatores especiais, tanto no governo FHC quanto no governo Lula, têm sido recebidos (inclusive pelos presidentes) com a maior atenção, obtendo total colaboração e apoio do Itamaraty e da Secretaria Especial dos Direitos Humanos (SEDH).
Isso porque, desde o retorno à democracia, está inscrito na política de Estado de direitos humanos que a soberania nacional não pode servir de escudo contra denúncias de violações de direitos humanos, pois denúncias não se negam, apuram-se.
Se foi tal o bafafá diante das seis páginas do relatório preliminar de Alston, imagine o que bambambã carioca irá dizer ao ler o relatório completo, que deverá ter umas 35 páginas, a dimensão padrão. Em vez de chiar, mais útil para os Estados brasileiros seria verificar o que foi ou não feito depois da visita da antecessora de Philip Alston, Asma Jahandir, em 2004.
Ao reler as recomendações propostas por ela, vemos que poucas foram implementadas pelos Estados, especialmente no que diz respeito ao uso excessivo da força pelas Polícias militares, que continuam, em várias capitais, matando em execuções sumárias disfarçadas de confrontos e sendo mortas pela criminalidade no chamado bico e outros empregos ilegais.
No relatório de Asma, há um discurso em sintonia com o que a SEDH, o ministro Paulo Vannuchi, centros de pesquisa, o Núcleo de Estudos da Violência da USP, a Comissão Teotônio Vilela, o Ministério Publico FEderal e o estadual e a sociedade civil vêm propondo há, pelo menos, 20 anos.
E, por fim, em sintonia com o que Alston propõe na sua atual prévia de relatório: aumento dos salários dos policiais, investigação independente das mortes pela polícia, melhoria dos institutos de medicina legal, mais poderes aos ombudsmen, monitoramento das condições dos presídios.
É um texto equilibrado, que incorpora pontos de vista dos policiais sobre as "guerras" contra o crime e reconhece o muito que foi realizado.
O relatório ressalta, para nosso encabulamento, no final: "O povo brasileiro não lutou contra 20 anos de ditadura ou adotou uma Constituição dedicada ao respeito dos direitos humanos, restaurando a liberdade no Brasil, para que policiais matem impunemente em nome da segurança". Lembrete que governo e sociedade deveriam recitar como um mantra para pôr fim à matança rotineira e inútil para a segurança do povo.


PAULO SÉRGIO PINHEIRO, 64, membro da Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA (Organização dos Estados Americanos), foi relator especial da ONU para Burundi e Mianmar. Foi secretário de Estado de Direitos Humanos no governo FHC.

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