São Paulo, terça-feira, 13 de julho de 2004

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ROBERTO MANGABEIRA UNGER

Elites abraçam tese radical

Hoje, nada de propostas programáticas; só um pouco de reportagem. Levantou-se em 1998 a tese de que o endividamento do Estado brasileiro se transformava em problema incapaz de ser resolvido na base de aceitação passiva das práticas e das expectativas do mercado financeiro. E mais do que isso: em obstáculo a qualquer novo ciclo de crescimento duradouro. Já se dilapidara o dinheiro das privatizações na farra da reeleição de FHC. E já se abandonara qualquer tentativa séria para forçar o Estado a gastar menos e a investir mais.
O Brasil entrava no caminho que nos levou ao ponto em que estamos hoje: uma dívida que, embora pareça razoável em termos absolutos e comparativos, se torna, em nossa realidade, impagável. Cobrada a juros arrasadores, a dívida interna anula a capacidade do Estado de atuar e de investir e sacrifica os produtores aos rentistas. Hoje um esforço fiscal hercúleo continua a pagar menos da metade dos juros da dívida interna; o resto se acresce ao principal. E o pagamento da dívida externa compromete a parte leonina das divisas produzidas pelo agronegócio -o único grande motor remanescente da economia brasileira- negando-nos recursos para financiar as importações necessárias ao reequipamento de nossa indústria.
A tese de que era preciso renegociar as dívidas interna e externa foi, porém, anatematizada como calote que levaria o Brasil ao abismo. Hoje os mesmos jornalistas e economistas continuam a dizer a mesma coisa, como se nada tivesse acontecido no Brasil ou no mundo.
Já mudou, porém, o que pensam a esse respeito os endinheirados acostumados a mandar e a desmandar no Brasil, embora seus agentes na mídia, na academia e no governo, continuem repetindo, como otários, o discurso de antes. Já se dá por insustentável a dinâmica da dívida. Alguns crêem que o problema será administrado por inflação mais alta, ainda que controlada. Outros, em número crescente, julgam que a inflação não bastará para evitar uma renegociação -já hoje relativamente traumática. Assimilaram as lições da Rússia e da Argentina. E examinaram nossas contas nacionais com o espírito de quem não confunde a religião dos mercados (contratos sagrados, povos não) com a imposição dos fatos.
Inverte-se o problema. Corremos o risco de ver a renegociação das dívidas, antes denunciada como se fora o fim do mundo, redescrita como a saída que ela não pode ser. Há muito tempo que a renegociação representa uma das preliminares -agora mais custosa do que poderia ter sido antes- de uma saída. É, porém, apenas a abertura -seja a uma ópera-bufa ou a Parsifal. Falta, ainda, o conteúdo de uma estratégia nacional desenvolvimentista e democratizante. O trauma da renegociação será estéril se não for acompanhado de iniciativas que se destinem a mobilizar os recursos nacionais, canalizando poupança privada de longo prazo para investimento privado de longo prazo, a instrumentalizar, com acesso a crédito, tecnologia e conhecimento, a multidão emergente de empreendedores, a resgatar da informalidade os dois terços de trabalhadores que trabalham sem carteira assinada e a aprofundar o mercado interno, aumentando a participação dos salários na renda nacional. A realidade penosa solapa o preconceito interesseiro. Mas só a aliança da clareza com a coragem libertará o país.


Roberto Mangabeira Unger escreve às terças-feiras nesta coluna.
www.law.harvard.edu/unger


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