|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
ROBERTO MANGABEIRA UNGER
Elites abraçam
tese radical
Hoje, nada de propostas programáticas; só um pouco de reportagem. Levantou-se em 1998 a tese de
que o endividamento do Estado brasileiro se transformava em problema incapaz de ser resolvido na base de aceitação passiva das práticas e das expectativas do mercado financeiro. E mais
do que isso: em obstáculo a qualquer
novo ciclo de crescimento duradouro.
Já se dilapidara o dinheiro das privatizações na farra da reeleição de FHC. E
já se abandonara qualquer tentativa
séria para forçar o Estado a gastar menos e a investir mais.
O Brasil entrava no caminho que
nos levou ao ponto em que estamos
hoje: uma dívida que, embora pareça
razoável em termos absolutos e comparativos, se torna, em nossa realidade, impagável. Cobrada a juros arrasadores, a dívida interna anula a capacidade do Estado de atuar e de investir e
sacrifica os produtores aos rentistas.
Hoje um esforço fiscal hercúleo continua a pagar menos da metade dos juros da dívida interna; o resto se acresce ao principal. E o pagamento da dívida externa compromete a parte leonina das divisas produzidas pelo agronegócio -o único grande motor remanescente da economia brasileira-
negando-nos recursos para financiar
as importações necessárias ao reequipamento de nossa indústria.
A tese de que era preciso renegociar
as dívidas interna e externa foi, porém, anatematizada como calote que
levaria o Brasil ao abismo. Hoje os
mesmos jornalistas e economistas
continuam a dizer a mesma coisa, como se nada tivesse acontecido no Brasil ou no mundo.
Já mudou, porém, o que pensam a
esse respeito os endinheirados acostumados a mandar e a desmandar no
Brasil, embora seus agentes na mídia,
na academia e no governo, continuem
repetindo, como otários, o discurso de
antes. Já se dá por insustentável a dinâmica da dívida. Alguns crêem que o
problema será administrado por inflação mais alta, ainda que controlada.
Outros, em número crescente, julgam
que a inflação não bastará para evitar
uma renegociação -já hoje relativamente traumática. Assimilaram as lições da Rússia e da Argentina. E examinaram nossas contas nacionais
com o espírito de quem não confunde
a religião dos mercados (contratos sagrados, povos não) com a imposição
dos fatos.
Inverte-se o problema. Corremos o
risco de ver a renegociação das dívidas, antes denunciada como se fora o
fim do mundo, redescrita como a saída que ela não pode ser. Há muito
tempo que a renegociação representa
uma das preliminares -agora mais
custosa do que poderia ter sido antes- de uma saída. É, porém, apenas
a abertura -seja a uma ópera-bufa ou
a Parsifal. Falta, ainda, o conteúdo de
uma estratégia nacional desenvolvimentista e democratizante. O trauma
da renegociação será estéril se não for
acompanhado de iniciativas que se
destinem a mobilizar os recursos nacionais, canalizando poupança privada de longo prazo para investimento
privado de longo prazo, a instrumentalizar, com acesso a crédito, tecnologia e conhecimento, a multidão emergente de empreendedores, a resgatar
da informalidade os dois terços de trabalhadores que trabalham sem carteira assinada e a aprofundar o mercado
interno, aumentando a participação
dos salários na renda nacional. A realidade penosa solapa o preconceito interesseiro. Mas só a aliança da clareza
com a coragem libertará o país.
Roberto Mangabeira Unger escreve às terças-feiras nesta coluna.
www.law.harvard.edu/unger
Texto Anterior: Rio de Janeiro - Carlos Heitor Cony: Quando as escamas caem Próximo Texto: Frases
Índice
|