|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
CARLOS HEITOR CONY
Quando as escamas caem
RIO DE JANEIRO - Nada mais devastador do que a beleza súbita. Compreendo aquela história do sapo que
virou príncipe e da fada madrinha
que transformou uma abóbora em
carruagem, levando Cinderela ao
baile no palácio real.
Num dos melhores filmes de Fellini
("I Vitteloni"), Franco Fabrizzi vai
trabalhar numa loja administrada
pela mulher do dono, uma senhora já
cinqüentona, austera, quase feia.
Vem o carnaval e os dois se encontram num baile. Franco está acompanhado pela jovem noiva, mas,
quando dá de cara com a patroa, fica
embasbacado. Ela pintara os olhos,
arrumara o cabelo, mostrava a boca
bem desenhada num sorriso provocante.
A transformação da bruxa em ninfa fez o rapaz perder a cabeça e o emprego. Deu em cima da patroa, a patroa contou para o marido. A beleza
subitamente revelada é mais comum
do que se pensa. Passamos meses,
muitas vezes anos, ao lado de uma
mulher à qual não damos bola. Pode
até ser nossa amiga, nossa confidente, mas fica nisso. Até que, de repente,
desprevenido, a gente repara um detalhe, uma boca, um olhar, um sorriso, um jeito de arrumar o cabelo e
pronto. Descobre-se a tal beleza súbita e dela nos tornamos, se não escravo, ao menos devoto.
Não se trata do banal "quem ama o
feio, bonito lhe parece". Geralmente
não sabemos olhar, ou melhor, olhamos depressa, tentando ver muito e
vendo apenas a ponta do iceberg. Naquela peça de Bernard Shaw inspirada na lenda de Pigmalião, o professor
Higgins custa a descobrir na mocinha vulgar que vendia flores no Covent Garden a mulher que havia
dentro dela. Os olhos do professor estavam cobertos de escamas, via mal e
via pouco.
Ao contrário da peça de Shaw, não
foi o professor que esculpiu na mocinha a deusa que havia dentro dela.
Foi a mocinha que esperou a hora
para se fazer mulher e deusa.
Texto Anterior: Brasília - Eliane Cantanhêde: Questão de fé Próximo Texto: Roberto Mangabeira Unger: Elites abraçam tese radical Índice
|