São Paulo, terça-feira, 13 de julho de 2004

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

CARLOS HEITOR CONY

Quando as escamas caem

RIO DE JANEIRO - Nada mais devastador do que a beleza súbita. Compreendo aquela história do sapo que virou príncipe e da fada madrinha que transformou uma abóbora em carruagem, levando Cinderela ao baile no palácio real.
Num dos melhores filmes de Fellini ("I Vitteloni"), Franco Fabrizzi vai trabalhar numa loja administrada pela mulher do dono, uma senhora já cinqüentona, austera, quase feia. Vem o carnaval e os dois se encontram num baile. Franco está acompanhado pela jovem noiva, mas, quando dá de cara com a patroa, fica embasbacado. Ela pintara os olhos, arrumara o cabelo, mostrava a boca bem desenhada num sorriso provocante.
A transformação da bruxa em ninfa fez o rapaz perder a cabeça e o emprego. Deu em cima da patroa, a patroa contou para o marido. A beleza subitamente revelada é mais comum do que se pensa. Passamos meses, muitas vezes anos, ao lado de uma mulher à qual não damos bola. Pode até ser nossa amiga, nossa confidente, mas fica nisso. Até que, de repente, desprevenido, a gente repara um detalhe, uma boca, um olhar, um sorriso, um jeito de arrumar o cabelo e pronto. Descobre-se a tal beleza súbita e dela nos tornamos, se não escravo, ao menos devoto.
Não se trata do banal "quem ama o feio, bonito lhe parece". Geralmente não sabemos olhar, ou melhor, olhamos depressa, tentando ver muito e vendo apenas a ponta do iceberg. Naquela peça de Bernard Shaw inspirada na lenda de Pigmalião, o professor Higgins custa a descobrir na mocinha vulgar que vendia flores no Covent Garden a mulher que havia dentro dela. Os olhos do professor estavam cobertos de escamas, via mal e via pouco.
Ao contrário da peça de Shaw, não foi o professor que esculpiu na mocinha a deusa que havia dentro dela. Foi a mocinha que esperou a hora para se fazer mulher e deusa.


Texto Anterior: Brasília - Eliane Cantanhêde: Questão de fé
Próximo Texto: Roberto Mangabeira Unger: Elites abraçam tese radical
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.