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São Paulo, quarta-feira, 13 de agosto de 2003

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ANTONIO DELFIM NETTO

Obediência ao mercado

O famoso "mercado" fica agitado quando não se faz exatamente o que ele recomenda ou quando, no Congresso, como consequência do contraditório, não se aprova sem crítica uma "reforma" proposta pelo Executivo. Tudo se passa como se o "mercado" fosse portador do estado da arte de uma verdadeira "ciência" que dispensa a democracia. Qualquer violação aos seus desejos é vista como uma transgressão ao "verdadeiro conhecimento". Por que discutir se ele sabe o que é certo? Mas, afinal, quem é esse "mercado"? Com raríssimas e notáveis exceções, é um conjunto constituído de elementos inteligentes que tiveram acesso às melhores escolas (em geral portadores de Ph.D) e que se dedicam a convencer em seu próprio interesse o "verdadeiro" mercado (os que compram e podem perder com os papéis que lhes vendem) de que são capazes de selecionar o portfólio mais rentável e de menor risco. Tudo aquilo que facilita a sua atividade é reconhecido como recomendável, não porque haja uma boa teoria para sustentá-lo, mas principalmente porque "é assim que funciona".
Não pode existir a menor dúvida sobre o fato de que um mercado financeiro e um mercado de capitais bem construídos, transparentes e com regras estáveis, que facilitem aos poupadores dividir os seus riscos, são instrumentos fundamentais para o financiamento do investimento criador de emprego e gerador de desenvolvimento. Foi essa divisão de riscos dos emprestadores que permitiu (desde a Grécia e Roma) a alguns empresários mais ousados envolver-se em fantásticas aventuras que produziam altos lucros com altíssimo risco. Quando ocorria o pior, a responsabilidade do empreendedor era limitada ao capital que havia posto no negócio. O curioso é que, até hoje, o governo se recusa a aceitar esse fato. Ainda agora, a propósito de uma mudança necessária no Código Tributário para a aprovação da Lei de Falências, ele intrujou um dispositivo que, se aprovado, envolveria, no caso de um fracasso, todo o patrimônio do empresário, e não apenas o que tivesse sido colocado no negócio. Esse dispositivo é um breviário contra todo investimento!
Nos países emergentes, os mercados costumam ser muito ineficientes, porque a fúria tributária de seus governos distorce a intermediação financeira por toda sorte de impostos. Profundamente endividados, os governos desses países esquecem-se de sua tarefa principal (organizar a sociedade para o desenvolvimento) e se concentram no aumento dos tributos para remunerar, generosamente, o estoque da dívida já constituída. O "mercado" é apenas um lucrativo "locus", onde um conjunto de transações de eficiência duvidosa financia um governo certamente ineficiente.
Quando a relação entre a dívida interna líquida e o PIB passa de 28% para 56% (o que aconteceu entre 1995 e 2002), é natural que o "mercado", mesmo reconhecendo o pequeno risco de "default", exija gordas taxas de juros. Infelizmente o mercado, com poucos agentes mobilizadores de poupança e apenas um agente tomador privilegiado, tem pouco espaço para financiar o setor privado, que faz o desenvolvimento. O problema é ainda mais grave quando a dívida é externa: nesse caso, os "desejos do mercado" tornam-se a última palavra do estado da arte da "teoria econômica"...


Antonio Delfim Netto escreve às quartas-feiras nesta coluna.
dep.delfimnetto@camara.gov.br


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