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TENDÊNCIAS/DEBATES
São Paulo, cidade sitiada
GERALDO MAJELLA AGNELO
Frente ao caos que
tomou conta de São Paulo, fica uma pergunta: onde está a raiz do problema?
Está na injustiça
SÃO PAULO, por muitas décadas,
fora o sonho de consumo de
muitos brasileiros. Sua capital
representava tudo aquilo que uma
pólis pode oferecer a seus cidadãos:
segurança em todos os níveis. Assim,
milhões de brasileiros, especialmente
nordestinos, foram em busca da terra
prometida, aquela mesma que um dia
fora abençoada pela presença de José
de Anchieta. Entretanto, passados os
anos, percebemos que o antigo paraíso tornou-se terra de desolação.
Frente ao caos que tomou conta de
São Paulo e está se reproduzindo no
resto do Brasil, uma pergunta emerge
do coração dos que desejam uma solução: onde está a raiz do problema?
Em meio a tantas opiniões, fico com a
maioria dos analistas sociais: está na
injustiça, que, a meu ver, é um cancro
que rói as entranhas da humanidade.
Creio que seja pertinente ouvir a
voz de Jesus, que, vivendo num mundo dividido e violento, afirmou ter pena da multidão desolada, "cansada e
abatida, como ovelhas sem pastor".
Inegavelmente, a existência da flagrante injustiça reinante no Brasil faz
surgir novas lideranças, boa parte delas surgidas dos guetos gerados por
essa mesma injustiça. Não adiantou
nos fecharmos em condomínios,
comprarmos câmaras para nos livrar
do "inimigo", pois ele está no meio de
nós, e nós subestimamos a sua inteligência. Ele aprendeu a corromper, a
comprar pessoas e instituições; ele
nos causa medo, pois atinge nossos filhos, atinge a todos nós, e agora ataca
até mesmo a instituição criada para
nos defender. Estamos reféns. Quem
pagará nosso resgate?
Impressionou-me o depoimento de
Marcola, no qual disse que sua "escola" fora a dos exemplos vindos de poderes constituídos, corrompidos e
corruptores. Não terá ele razão? Essa
escola não atingiu só o PCC: tem atingido toda a sociedade. Ser honesto
passou a ser sinônimo de tolo, de débil mental. Mas não existe só essa escola apontada por Marcola. Nós criamos muitas outras, e por elas caminhamos.
Entretanto, chegou a hora
de trilharmos novos aprendizados.
Onde dormem nossos velhos mestres?
Se recordar é viver, temos que nos
reportar à Roma Antiga, tão segura de
sua perpetuidade. Ela foi quase destruída quando viu surgir em seu seio
governantes inaptos, defensores de
seus interesses particulares. Homens
que não conseguiam enxergar além
do próprio nariz e, por isso, levaram à
ruína o que fora construído pelo labor
de muitos. E não foi preciso tanto para que os "bárbaros", povos não muito
distantes, ingressassem, tomassem
posse da terra pela violência e desolassem um povo aterrorizado. Roma é
aqui! Brasília caminha para Bangu 1, e
Rondônia ressuscitou o morto Carandiru. A erva daninha tomou conta do
jardim. Onde está o jardineiro?
Entretanto, dentro de nossas prisões residenciais, estamos reféns de
todas as espécies de bandido e, pasmem, eles não estão somente nas frágeis prisões brasileiras, eles não são
apenas constituídos de homens negros e pobres...
Penso que hoje não podemos apenas falar de pecado social. Há também um pecado estrutural, presente
nas instituições governamentais mais
representativas. E isso se faz notório
quando percebemos que, mesmo enxergando a calamidade que está dentro de nós, continuamos tentando encobrir o sol com a peneira, como se tivéssemos controle do tsunami que se
formou no meio do oceano social.
Precisamos lembrar que um autêntico estado de paz social não é apenas
o resultado de um respeito formal às
regras. É o fruto da convicta aceitação
dos valores que inspiram os procedimentos democráticos: a dignidade da
pessoa humana, o respeito dos direitos humanos, do direito à segurança,
do fato de assumir o bem comum como fim e critério regulador da vida
pública.
Porém, estou convicto de que não
chegamos ao fundo do poço. É possível, sim, vencermos o que hoje tanto
nos entristece. Mas isso só será possível se revisarmos o caminho outrora
percorrido. Precisamos atacar as conseqüências, sem deixar de penetrar
profundamente nas causas, e essa revisão precisa ser geral, por parte de
governo, igreja, quartéis, sociedade.
Não há tempo para apontar culpados
e vítimas. Todos somos culpados e vítimas -e, diria melhor, somos vítimas de nossas culpas.
Aos do PCC, a palavra de Jesus:
"Guarda a tua espada, pois todos os
que usarem a espada, morrerão por
meio da espada" (Mateus: 26,52). Aos
governantes: "Dá conta de tua administração" (Lucas: 16,2). À população
de São Paulo e do Brasil: "Eu vos deixo
a paz, eu vos dou a minha paz" (João:
14, 27).
DOM GERALDO MAJELLA CARDEAL AGNELO, doutor
em teologia com especialização em liturgia, arcebispo de
Salvador (BA) e arcebispo primaz do Brasil, é o presidente
da CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil).
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