São Paulo, domingo, 13 de agosto de 2006

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TENDÊNCIAS/DEBATES

São Paulo, cidade sitiada

GERALDO MAJELLA AGNELO

Frente ao caos que tomou conta de São Paulo, fica uma pergunta: onde está a raiz do problema? Está na injustiça

SÃO PAULO, por muitas décadas, fora o sonho de consumo de muitos brasileiros. Sua capital representava tudo aquilo que uma pólis pode oferecer a seus cidadãos: segurança em todos os níveis. Assim, milhões de brasileiros, especialmente nordestinos, foram em busca da terra prometida, aquela mesma que um dia fora abençoada pela presença de José de Anchieta. Entretanto, passados os anos, percebemos que o antigo paraíso tornou-se terra de desolação.
Frente ao caos que tomou conta de São Paulo e está se reproduzindo no resto do Brasil, uma pergunta emerge do coração dos que desejam uma solução: onde está a raiz do problema?
Em meio a tantas opiniões, fico com a maioria dos analistas sociais: está na injustiça, que, a meu ver, é um cancro que rói as entranhas da humanidade.
Creio que seja pertinente ouvir a voz de Jesus, que, vivendo num mundo dividido e violento, afirmou ter pena da multidão desolada, "cansada e abatida, como ovelhas sem pastor".
Inegavelmente, a existência da flagrante injustiça reinante no Brasil faz surgir novas lideranças, boa parte delas surgidas dos guetos gerados por essa mesma injustiça. Não adiantou nos fecharmos em condomínios, comprarmos câmaras para nos livrar do "inimigo", pois ele está no meio de nós, e nós subestimamos a sua inteligência. Ele aprendeu a corromper, a comprar pessoas e instituições; ele nos causa medo, pois atinge nossos filhos, atinge a todos nós, e agora ataca até mesmo a instituição criada para nos defender. Estamos reféns. Quem pagará nosso resgate?
Impressionou-me o depoimento de Marcola, no qual disse que sua "escola" fora a dos exemplos vindos de poderes constituídos, corrompidos e corruptores. Não terá ele razão? Essa escola não atingiu só o PCC: tem atingido toda a sociedade. Ser honesto passou a ser sinônimo de tolo, de débil mental. Mas não existe só essa escola apontada por Marcola. Nós criamos muitas outras, e por elas caminhamos.
Entretanto, chegou a hora de trilharmos novos aprendizados. Onde dormem nossos velhos mestres?
Se recordar é viver, temos que nos reportar à Roma Antiga, tão segura de sua perpetuidade. Ela foi quase destruída quando viu surgir em seu seio governantes inaptos, defensores de seus interesses particulares. Homens que não conseguiam enxergar além do próprio nariz e, por isso, levaram à ruína o que fora construído pelo labor de muitos. E não foi preciso tanto para que os "bárbaros", povos não muito distantes, ingressassem, tomassem posse da terra pela violência e desolassem um povo aterrorizado. Roma é aqui! Brasília caminha para Bangu 1, e Rondônia ressuscitou o morto Carandiru. A erva daninha tomou conta do jardim. Onde está o jardineiro?
Entretanto, dentro de nossas prisões residenciais, estamos reféns de todas as espécies de bandido e, pasmem, eles não estão somente nas frágeis prisões brasileiras, eles não são apenas constituídos de homens negros e pobres...
Penso que hoje não podemos apenas falar de pecado social. Há também um pecado estrutural, presente nas instituições governamentais mais representativas. E isso se faz notório quando percebemos que, mesmo enxergando a calamidade que está dentro de nós, continuamos tentando encobrir o sol com a peneira, como se tivéssemos controle do tsunami que se formou no meio do oceano social.
Precisamos lembrar que um autêntico estado de paz social não é apenas o resultado de um respeito formal às regras. É o fruto da convicta aceitação dos valores que inspiram os procedimentos democráticos: a dignidade da pessoa humana, o respeito dos direitos humanos, do direito à segurança, do fato de assumir o bem comum como fim e critério regulador da vida pública.
Porém, estou convicto de que não chegamos ao fundo do poço. É possível, sim, vencermos o que hoje tanto nos entristece. Mas isso só será possível se revisarmos o caminho outrora percorrido. Precisamos atacar as conseqüências, sem deixar de penetrar profundamente nas causas, e essa revisão precisa ser geral, por parte de governo, igreja, quartéis, sociedade. Não há tempo para apontar culpados e vítimas. Todos somos culpados e vítimas -e, diria melhor, somos vítimas de nossas culpas.
Aos do PCC, a palavra de Jesus: "Guarda a tua espada, pois todos os que usarem a espada, morrerão por meio da espada" (Mateus: 26,52). Aos governantes: "Dá conta de tua administração" (Lucas: 16,2). À população de São Paulo e do Brasil: "Eu vos deixo a paz, eu vos dou a minha paz" (João: 14, 27).


DOM GERALDO MAJELLA CARDEAL AGNELO, doutor em teologia com especialização em liturgia, arcebispo de Salvador (BA) e arcebispo primaz do Brasil, é o presidente da CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil).

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