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Não esquecer Corumbiara
PAULO VANNUCHI e PAULO SÉRGIO PINHEIRO
É preciso dar um basta definitivo à violência institucional que continua à sombra da conivência
de certas autoridades
11 ANOS atrás, aconteceu em
Rondônia um dos mais dramáticos conflitos agrários de nossa
história. Resultou em pelo menos 12
mortos, incluindo a menina Vanessa,
de seis anos, prisão de 350 pessoas,
dezenas de feridos e irrefutáveis registros de torturas, espancamentos e
execuções sumárias.
Por que recordar episódio tão incômodo? Por uma razão muito forte:
nosso país ainda não conseguiu implementar um eficiente sistema de
proteção aos direitos humanos, capaz
de unir autoridades e sociedade civil
em um verdadeiro pacto nacional de
respeito à lei e à dignidade da pessoa
humana. Atualmente, existem focos
de tensão semelhante, que podem resultar em desfecho idêntico: São Lourenço da Mata (PE), Coqueiros do Sul
(RS), Antonio João (MS), Raposa Serra do Sol (RR), entre muitos outros.
Em 14/7/1995, trabalhadores rurais sem terra ocuparam uma gleba da
fazenda Elina, no município de Corumbiara, perto da divisa com o Mato
Grosso e da fronteira com a Bolívia.
Dias depois, foi expedida liminar de
reintegração de posse, sob pressão de
ruralistas da região. Fracassadas frágeis e poucas tentativas de negociação, na madrugada de 9 de agosto, começou o despejo pela PM de Rondônia, em promiscuidade com jagunços
contratados por fazendeiros.
Gás lacrimogêneo e fogo cerrado
deram início à construção do cenário
dantesco que resultou, horas mais
tarde, em centenas de trabalhadores
subjugados e deitados com o rosto na
terra, alguns sob as botas de policiais
encapuzados, dezenas de feridos e cadáveres em caminhões que os transportaram para municípios vizinhos,
barracas calcinadas, choro de crianças e um número de mortos que nunca será conhecido com exatidão.
Compareceram à cena do crime lideranças como Lula, deputados como
Luiz Eduardo Greenhalgh, a Comissão Teotônio Vilela de Direitos Humanos e mais entidades. Explicaram
ao governador as conseqüências internacionais pro Brasil, com investigações de relatores especiais da ONU
e certeza de denúncias nos organismos regionais de direitos humanos.
Ficou a impressão de que, pela primeira vez, as autoridades estaduais se
davam conta de que violações de direitos humanos repercutem muito
além do Estado. Exigiu-se investigação pra valer, pelo Ministério Público
local, e não mero faz-de-conta, como
costumava acontecer no passado, e
ainda por vezes acontece, sempre que
havia agentes do Estado envolvidos.
Pouco depois, realizou-se uma audiência pública, aberta à imprensa, do
Conselho de Defesa dos Direitos da
Pessoa Humana, quando secretários
de Estado de Rondônia, o procurador-geral de Justiça e o comandante
da PM foram a Brasília prestar contas
das investigações. O relatório da comissão especial enviada a Rondônia
não deixou dúvidas sobre a gravidade
e a extensão das violações. Também a
Comissão Interamericana dos Direitos Humanos, dos EUA, não hesitou
em acolher a petição apresentada por
entidades que levaram denúncia formal a esse organismo da OEA.
Tratava-se de garantir apuração rigorosa, punição dos responsáveis, reparação às vítimas, providências para
impedir a repetição de episódios como aquele. Porém, o resultado final
não fugiu à regra de casos semelhantes -Candelária, Carandiru, Vigário
Geral e Eldorado de Carajás. Os julgamentos sempre demoram anos e terminam em sentenças que reforçam o
sentimento de impunidade que reina
no país. De fato, cinco anos depois, foram condenados dois camponeses e
alguns policiais, sem incluir comandantes. Recursos foram impetrados
pela defesa dos soldados, e tudo bem
somado, ninguém foi punido.
É preciso dar um basta definitivo à
violência institucional que continua à
sombra da conivência de autoridades
que são ainda insensíveis ao imperativo de estrito respeito à lei que deve reger a conduta de todos no Estado de
Direito. Distintas administrações federais têm se esforçado por implantar
uma política de Estado de direitos humanos, que não é monopólio de nenhum partido.
Acaba de ser criado um organismo
nacional para a prevenção da violência no campo, apostando no esforço
permanente de mediação de conflitos. Porém, ainda há grave descompasso entre o que se passa em várias
unidades da Federação e a necessidade de respeitar os compromissos ratificados pelo Brasil na ONU e na OEA.
Corumbiara deve servir de alerta a
todas as autoridades. Cabe insistir até
o último limite na mediação dos conflitos, buscando saídas negociadas para evitar derramamento de sangue.
Quando falharem todas as tentativas
e os choques ocorrerem, será preciso
garantir apuração rigorosa, processo
judicial isento, transparência e punição exemplar dos agentes públicos.
Sem isso, não conseguiremos consolidar a democracia em nosso país.
PAULO VANNUCHI é ministro da Secretaria Especial dos
Direitos Humanos da Presidência da República.
PAULO SÉRGIO PINHEIRO é expert independente do secretário-geral da ONU para violência contra a criança. Foi
secretário de Estado dos Direitos Humanos.
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