São Paulo, domingo, 13 de agosto de 2006

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Não esquecer Corumbiara

PAULO VANNUCHI e PAULO SÉRGIO PINHEIRO

É preciso dar um basta definitivo à violência institucional que continua à sombra da conivência de certas autoridades

11 ANOS atrás, aconteceu em Rondônia um dos mais dramáticos conflitos agrários de nossa história. Resultou em pelo menos 12 mortos, incluindo a menina Vanessa, de seis anos, prisão de 350 pessoas, dezenas de feridos e irrefutáveis registros de torturas, espancamentos e execuções sumárias.
Por que recordar episódio tão incômodo? Por uma razão muito forte: nosso país ainda não conseguiu implementar um eficiente sistema de proteção aos direitos humanos, capaz de unir autoridades e sociedade civil em um verdadeiro pacto nacional de respeito à lei e à dignidade da pessoa humana. Atualmente, existem focos de tensão semelhante, que podem resultar em desfecho idêntico: São Lourenço da Mata (PE), Coqueiros do Sul (RS), Antonio João (MS), Raposa Serra do Sol (RR), entre muitos outros.
Em 14/7/1995, trabalhadores rurais sem terra ocuparam uma gleba da fazenda Elina, no município de Corumbiara, perto da divisa com o Mato Grosso e da fronteira com a Bolívia. Dias depois, foi expedida liminar de reintegração de posse, sob pressão de ruralistas da região. Fracassadas frágeis e poucas tentativas de negociação, na madrugada de 9 de agosto, começou o despejo pela PM de Rondônia, em promiscuidade com jagunços contratados por fazendeiros.
Gás lacrimogêneo e fogo cerrado deram início à construção do cenário dantesco que resultou, horas mais tarde, em centenas de trabalhadores subjugados e deitados com o rosto na terra, alguns sob as botas de policiais encapuzados, dezenas de feridos e cadáveres em caminhões que os transportaram para municípios vizinhos, barracas calcinadas, choro de crianças e um número de mortos que nunca será conhecido com exatidão.
Compareceram à cena do crime lideranças como Lula, deputados como Luiz Eduardo Greenhalgh, a Comissão Teotônio Vilela de Direitos Humanos e mais entidades. Explicaram ao governador as conseqüências internacionais pro Brasil, com investigações de relatores especiais da ONU e certeza de denúncias nos organismos regionais de direitos humanos.
Ficou a impressão de que, pela primeira vez, as autoridades estaduais se davam conta de que violações de direitos humanos repercutem muito além do Estado. Exigiu-se investigação pra valer, pelo Ministério Público local, e não mero faz-de-conta, como costumava acontecer no passado, e ainda por vezes acontece, sempre que havia agentes do Estado envolvidos.
Pouco depois, realizou-se uma audiência pública, aberta à imprensa, do Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana, quando secretários de Estado de Rondônia, o procurador-geral de Justiça e o comandante da PM foram a Brasília prestar contas das investigações. O relatório da comissão especial enviada a Rondônia não deixou dúvidas sobre a gravidade e a extensão das violações. Também a Comissão Interamericana dos Direitos Humanos, dos EUA, não hesitou em acolher a petição apresentada por entidades que levaram denúncia formal a esse organismo da OEA.
Tratava-se de garantir apuração rigorosa, punição dos responsáveis, reparação às vítimas, providências para impedir a repetição de episódios como aquele. Porém, o resultado final não fugiu à regra de casos semelhantes -Candelária, Carandiru, Vigário Geral e Eldorado de Carajás. Os julgamentos sempre demoram anos e terminam em sentenças que reforçam o sentimento de impunidade que reina no país. De fato, cinco anos depois, foram condenados dois camponeses e alguns policiais, sem incluir comandantes. Recursos foram impetrados pela defesa dos soldados, e tudo bem somado, ninguém foi punido.
É preciso dar um basta definitivo à violência institucional que continua à sombra da conivência de autoridades que são ainda insensíveis ao imperativo de estrito respeito à lei que deve reger a conduta de todos no Estado de Direito. Distintas administrações federais têm se esforçado por implantar uma política de Estado de direitos humanos, que não é monopólio de nenhum partido.
Acaba de ser criado um organismo nacional para a prevenção da violência no campo, apostando no esforço permanente de mediação de conflitos. Porém, ainda há grave descompasso entre o que se passa em várias unidades da Federação e a necessidade de respeitar os compromissos ratificados pelo Brasil na ONU e na OEA.
Corumbiara deve servir de alerta a todas as autoridades. Cabe insistir até o último limite na mediação dos conflitos, buscando saídas negociadas para evitar derramamento de sangue.
Quando falharem todas as tentativas e os choques ocorrerem, será preciso garantir apuração rigorosa, processo judicial isento, transparência e punição exemplar dos agentes públicos. Sem isso, não conseguiremos consolidar a democracia em nosso país.


PAULO VANNUCHI é ministro da Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República. PAULO SÉRGIO PINHEIRO é expert independente do secretário-geral da ONU para violência contra a criança. Foi secretário de Estado dos Direitos Humanos.

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